Uma das minhas primeiras memórias musicais, certamente uma das lembranças mais emocionantes que guardo, é a cena do meu saudoso avô paterno, Orlando Mattoso, sentado com seu cavaquinho ao lado da vitrola, ouvindo e tentando assimilar as canções de Cartola.
Somente muitos anos depois, quando a vitrola já não se fazia ouvir mais com a frequência de tempos atrás, descobri que o disco em questão era o “Verde Que Te Quero Rosa”. O álbum que se tornaria um clássico da música brasileira foi produzido em 1977 por Sérgio Cabral, quando Cartola já estava perto de completar seus 70 anos de idade.
O eterno gênio que hoje conhecemos como Cartola nasceu no bairro do Catete, em 1908, e ainda aos 11 anos foi morar no morro da Mangueira. Uma curiosidade é que apesar de ter recebido dos pais o nome de Agenor, acabou sendo registrado como Angenor provavelmente em função de um erro do cartório.
Nesta última segunda-feira chuvosa de onze de outubro as recordações voltam com mais força ao saber que se tratava do dia do aniversário de 113 anos do compositor, cantor, violonista e poeta mangueirense Angenor de Oliveira.
Nas palavras de Cláudio Jorge de Barros, violonista, compositor, arranjador e produtor que teve o prazer de ser parceiro e tocar com Angenor: “Cartola é um marco na história da música brasileira. A partir de sua trajetória pessoal, a mesma de muitos cariocas moradores das favelas, tornou-se um compositor que ultrapassou as fronteiras do universo do samba para tornar-se o autor de inesquecíveis canções.
Cartola é acima de tudo um poeta, nas suas canções, no estilo de vida e na sua relação com a Mangueira, escola para a qual escolheu as cores verde e rosa. Sou muito orgulhoso de ter vivido no mesmo tempo que Cartola, ter trabalhado com ele e ainda ter sido seu parceiro em duas canções. Vida eterna para o Mestre Cartola e toda a sua obra!”
Neste mesmo mês de outubro, além do nascimento de Cartola, os subúrbios também têm muitos outros motivos para celebrar. Entre eles estão o aniversário de 150 anos da região leopolinense, comemorado no próximo dia 23, conjuntamente com a popular festa da Penha, padroeira da Zona da Leopoldina e uma das mais antigas manifestações religiosas do país. Aproveitando esse contexto, o terceiro Viradão Cultural Suburbano: Baixada, Favelas e Periferias lança seu edital de convocação.
Programado para acontecer na semana seguinte ao Dia da Consciência Negra, nos dias 26, 27 e 28 de Novembro, o Viradão Suburbano de 2021 terá como foco a região do grande Méier. A escolha dessa parte dos subúrbios da Central, assim como do mês de outubro tem um forte simbolismo. Destacamos que o próprio mestre Cartola nos deixou em um dia 30 de outubro do ano de 1980, além do fato de outros ilustres moradores suburbanos, especificamente da região do grande Méier, terem seu nome intimamente vinculado à área. Lima Barreto foi morador de Todos os Santos e este ano completou 140 anos, Pixinguinha nasceu em Piedade, em 1897. O poeta simbolista Cruz e Souza, que morou no bairro do Encantado, completaria 160 anos no próximo dia 24 e não podemos esquecer que João Nogueira, cria do Méier, que faria seus 80 anos de nascimento no dia 12, também no mesmo mês de novembro.
Segundo Cláudio Jorge Soares, um dos organizadores do Viradão Suburbano, a escolha do Meier, território que se constituiu entre o Engenho de Dentro e o Engenho Novo, é muito relevante. “Estamos contando a história de uma parte significativa dos bairros dos subúrbios do Rio, a partir da sua configuração socioespacial. Toda essa área teria surgido de grandes fazendas de cana-de-açúcar que foram desmembradas, fazendo surgir os bairros de São Cristóvão, Cachambi e Engenho Novo. O Méier teve entre seus primeiros moradores escravos fugidos da Serra dos Pretos Forros.”
A edição deste ano do Viradão vai homenagear principalmente Lima Barreto, importante escritor negro que faz aniversária no mesmo dia da inauguração da estação ferroviária do Meier, em 13 de maio.
A tradição cultural dessa parte dos subúrbios é inegável, pois desde o início do século passado sediou dezenas de cinemas, clubes, cafés e confeitarias. Lima Barreto chegou a escrever que “É o Méier o orgulho dos subúrbios e dos suburbanos. Tem confeitarias decentes, botequins frequentados; tem padarias que fabricam pães, estimados e procurados; tem cinemas…”
O Méier tinha sua gafieira, a Elite Clube do Méier, que funcionava desde 1937. Teve um dos maiores cinemas da América Latina, o Imperator, inaugurado em 1954. Foi lá que João Nogueira compôs e cantou muitas de suas músicas e também fundou o Clube do Samba. A tradição do Bairro pela dança também fez com que a atriz Adriana Esteves e a apresentadora Fátima Bernardes começassem a usar suas primeiras sapatilhas. Os bares e restaurantes da região serviram de palco e laboratório para nomes como Seu Jorge, Xande de Pilares e Gabriel Moura, que começavam a trilhar suas carreiras de sucesso.
A marca literária de Cruz e Souza e Lima Barreto teve continuidade na escrita e no humor gráfico de Millôr Fernandes e seu irmão Hélio Fernandes. Da mesma forma que no Engenho de Dentro, a tradição carnavalesca do Bloco Chave de Ouro ajudou a produzir o aparecimento do Bloco Loucura Suburbana, recentemente considerado Patrimônio Cultural Imaterial do Povo Carioca. E agora é a vez do Viradão Suburbano chegar para celebrar tantas histórias e tradições.
As inscrições para o 3º Viradão Cultural suburbano, que acontece nos dias 26, 27 e 28 de novembro, estão abertas e tanto o edital como o formulário de inscrição estão disponíveis em suas redes sociais, no Instagram e Facebook. Para mais informações acesse: https://www.facebook.com/viradaosuburbano/
Os artistas que desejam participar da edição 2021 têm até o dia 1º de novembro para enviar suas inscrições.