Essa semana não começou nada bem para grande parte dos trabalhadores que dependem do transporte público na cidade do Rio de Janeiro. As consequências das fortes chuvas do último final de semana ainda atrapalhavam muito o deslocamento nas principais vias da cidade.
Infelizmente, as dificuldades não se restringem apenas ao setor rodoviário, que tem sofrido com vertiginosa alta nos preços dos combustíveis, recentes paralisações de motoristas de aplicativos e greves dos trabalhadores rodoviários nos ônibus e BRTs. O problema também afeta drasticamente os usuários dos transportes ferroviários.
O início do mês de abril ainda trouxe um aumento considerável das passagens do MetrôRio, que aumentou sua tarifa de R,80 para R,50, sendo a mais cara do país. Sem esquecer de citar a precariedade dos serviços prestados pelos trens da Supervia.
Desde a última segunda-feira, que já começou com atrasos e falta de trens. A Agetransp, agência reguladora de transportes no Estado do Rio de Janeiro, estipulou uma multa à concessionária no valor de R$ 2,2 milhões, devido à falta de investimentos nos trens durante os últimos dez anos de contrato de concessão.
Especificamente em relação aos trens cariocas, é surpreendente constatar que este modelo de transporte já foi considerado signo da modernidade nacional. Principalmente os trens que atendem os chamados subúrbios da Central, que no último dia 29 de março completaram 164 anos de sua inauguração, formando a base do que hoje conhecemos como ramal Central do Brasil.
Essa rica parte da história dos transportes também está ameaçada: hoje pouco se houve falar da importância da abertura das primeiras paradas de passageiros nos subúrbios, junto com a própria inauguração da originária Estrada de Ferro Dom Pedro II, em 1858. Algo tão grave que em setembro do ano passado a Justiça chegou a estipular um prazo de 120 dias para que a Supervia, o Governo do Estado e a União apresentem ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) um projeto de reforma total na Estação da Leopoldina, patrimônio que ainda segue ameaçado pelo abandono. O mesmo triste panorama abrange o Museu do Trem, no Engenho de Dentro, igualmente tombado pelo Iphan desde maio de 2011, que foi fechado. Seu acervo segue inacessível ao público por total falta de estrutura, e sequer há uma previsão de reabertura do museu.
Para contribuir com o debate sobre a importância histórica dos trens neste contexto complicado que atravessamos, convidamos a historiadora Rachel Gomes de Lima, autora do livro “Senhores e possuidores: propriedades, famílias e negócios de terra no rural carioca oitocentista.”
Rachel acaba de publicar um texto muito interessante, no Instagram do coletivo Engenhos de Histórias, falando sobre a infraestrutura dos trens dos subúrbios. Ela afirma que “os trens foram tão influentes na valorização do território suburbano que até hoje muitas pessoas identificam automaticamente o subúrbio com os bairros que beiram a linha do trem, quando, na verdade, sabemos que o subúrbio vai muito além desta delimitação geográfica. O Brasil chegou a ter uma das redes ferroviárias mais modernas do mundo. É uma pena termos estagnado no tempo.”
Aproveitamos para reproduzir a publicação “Os trens dos subúrbios”. Basta clicar aqui.
“O ano de 2022 iniciou-se com a redução de várias linhas de ônibus e com aumento das tarifas de outros meios de transporte, como barcas e trens, sem corresponder ao serviço que nos é prestado. E se hoje sofremos com esses problemas, saibam que no século XIX os incômodos já eram existentes.
Prêmio do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, o livro de Elaina Serfaty intitulado “Pelos Trens dos Subúrbios: disputas e solidariedades no Engenho de Dentro (1870-1906)”, publicado em 2018, é um trabalho que aborda como o serviço de trens, inaugurado em 1858 no estado do Rio, influenciou a ocupação dos subúrbios naquele século, especificamente o Engenho de Dentro, local onde foram construídas suas oficinas.
Serfaty destaca uma característica primordial dos subúrbios: a diversidade. Bem salientada no livro, essa diversidade já existia na década de 1880, e foi retratada na charge de Ângelo Agostini, em 28 de setembro de 1882, na Revista Illustrada. A autora destaca também a luta dos moradores suburbanos, principalmente aqueles que investiam em empreendimentos imobiliários.
A charge mostrava o debate sobre a possível redução do número de viagens para os trens dos subúrbios que, de acordo com alguns senadores, prejudicava as viagens de cargas para a exportação. Para suprir a diminuição das viagens, era só adicionar linhas de bondes da companhia Carris Vila Isabel. Agostini mostra bem em sua charge que os trens eram de interesse público e sua supressão ou substituição para linhas de bondes seria interesse privado.
Na charge podemos ver os vagões do trem suburbano com uma população grande e diversificada: na 1ª classe somente homens de cartola e paletó; na 2ª, mulheres e homens com vestes mais simples. Além disso, o ministro da agricultura aparece caído no chão, como que atropelado pelo trem suburbano que já havia rompido o bloqueio da supressão, representando assim a vitória dos suburbanos em defesa de seus direitos na manutenção do número de viagens.”
Em seu livro, lançado em 2018 pela editora Multifoco, Rachel Lima observou como a construção da linha férrea pela freguesia de Inhaúma valorizou as propriedades por onde passava, assim como aquelas terras próximas às estações que foram abertas. Tal valorização das terras estimulou os próprios senhores locais a abrirem ruas e lotearem suas propriedades, como as terras da família Duque Estrada Meyer (no Engenho Novo), Terras de Manoel Joaquim de Aguiar (em Cascadura), o Capão do Bispo (em Todos os Santos) e o Engenho de Dentro, que teve pelo menos 3 leilões.
Desde o final do século XIX, muitos políticos já propunham que fosse facilitado o acesso às áreas mais suburbanas da cidade, principalmente para o chamado proletariado. Dr. José Maria Teixeira, membro da Comissão Sanitária, chegou a sugerir como medida incentivadora desta política a diminuição no preço das passagens de bondes e trens para os subúrbios, assim como a ampliação e aumento na oferta do número de horários e linhas. Acreditava-se desta forma que se teria um maior controle e a sucessiva diminuição das represálias e greves dos trabalhadores, assim como a melhoria das condições estéticas e higiênicas do centro da cidade.
Sabemos que muitas coisas mudaram desde de março de 1858, quando foi concluída a etapa inicial da estrada de Ferro Dom Pedro II, até os dias de hoje. Contudo, o trem nunca deixou de ser um elemento fundamental da cultura e da geografia carioca. Protagonista de várias histórias, desde a sua viagem inaugural tendo como passageiros Dom Pedro II e sua família, passando pelos vendedores ambulantes, pregadores religiosos, surfistas de trem e muitos artistas, chegando até aos famosos Trem do Samba e Trem do Choro.
Outra importante contribuição para essa coluna foi dada pelo arquiteto e urbanista Antônio José Pedral Sampaio Lins. Ele trabalhou na Rede Ferroviária Federal, entre 1973 e 1983, na Companhia Brasileira de Trens Urbanos, de 1983 a 1994, na Companhia Fluminense de Trens Urbanos, de 1995 até 1999, e, por fim, na Companhia Estadual de Engenharia de Transportes e Logística, até 2008.
Antônio, que acaba de lançar o livro “Cidade Híbrida: contribuição para uma teoria das periferias urbanas contemporâneas no Brasil”, pela RioBooks, nos conta que “trem, trens, ferrovia, linha férrea são palavras que, além de seus significados específicos, nos remetem a múltiplos universos e interpretações. Estão presentes nos nossos sonhos, daquelas viagens idealizadas ou de nosso cotidiano. Também nos remetem aos transportes, da logística (palavra recente no vocabulário dos urbanistas), para além das viagens sonhadas, se nos debruçarmos sobre a eficiência e qualidade em nossos deslocamentos diários.
Em nossas vidas e no universo das cidades foram incorporados a partir de meados do século XIX, em 1825, após a criação da primeira linha férrea de passageiros, entre as cidades de Stockton e Darlington, na Inglaterra Vitoriana. No Brasil a primeira ferrovia foi inaugurada em 30 de abril de 1830, portanto cinco anos apenas após a primeira locomotiva circular na Inglaterra. A Estrada de Ferro Mauá, que ligou o Porto de Guia de Pacobaíba a Vila Inhomirim, no município de Magé. Portanto comemoramos nesta semana 192 anos que o primeiro trem circulou por aqui.
Ao longo dos anos nos acostumamos a associar trens e subúrbios como um par perfeito. Esta associação tem razão de ser, pois as ferrovias fizeram, em muitos casos, os novos bairros surgidos com a expansão dos núcleos urbanos congestionados de então. Vamos lembrar que na primeira era da industrialização, as indústrias movidas a carvão instalaram-se nos centros urbanos existentes, e expandiram-se nos anos seguintes pelos subúrbios situados a norte, oeste e sul da cidade. A expansão nas direções norte e oeste buscaram a proximidade das linhas férreas para facilitar o escoamento da produção.
A primeira linha férrea construída partindo do Centro da cidade ligou a região central da cidade à localidade de Queimados, na Baixada Fluminense, alcançando Japeri no mesmo ano. Seguindo posteriormente na direção do Vale do Paraíba para escoar a produção de café em direção ao Porto do Rio de Janeiro. Os serviços de passageiros só iriam ser iniciados por volta de 1870.”
Outra curiosidade interessante é saber que foi somente a partir do golpe republicano, de 1889, que muitos dos antigos nomes de estações ferroviárias vinculados à monarquia passaram a ser substituídos por referências do novo governo. Foi neste contexto que a Estrada de Ferro Dom Pedro II receberia o nome de Central do Brasil.
Por falar em trens da Central e já trilhando para o final do texto, lembrei como foi difícil não se emocionar com a cerimônia de posse da última sexta-feira do mês de março (25), na Academia Brasileira de Letras. Neste dia, Fernanda Montenegro, sem dúvida uma das maiores atrizes brasileiras, tornou-se a primeira mulher imortal a assumir a cadeira de número dezessete da ABL. É justo dizer que a ilustre suburbana, nascida há 92 anos no bairro do Campinho, também foi a primeira latino-americana e a única brasileira já indicada ao Oscar de Melhor Atriz, em 1999, exatamente pelo filme Central do Brasil.
Para tentar fechar nosso texto no mesmo sentido dos trilhos que seguem o curso da história, recorremos à poesia presente na letra da música “Rodo Cotidiano”, da banda O Rappa, lembrando que todos somos “mais um no Brasil da Central, da minhoca de metal que corta as ruas, como um concorde apressado cheio de força, que voa, voa mais pesado que o ar e o avião, o avião do trabalhador…”