Desde o começo da quarentena me questiono sobre o uso da expressão “isolamento social”. Em meio à maior pandemia do século XXI, momento em que todos os esforços deveriam estar unidos para a resolução desse grave quadro epidemiológico, vejo uma contradição na interpretação da ideia de isolamento. Parece apenas uma ação individualista, soa de forma destoante em meio aos grandes esforços encampados por uma ampla equipe de profissionais de saúde unidos nessa guerra pela vida.
Claro que não podemos negar a necessidade de buscar meios de proteção contra a rápida disseminação do coronavírus. Garantir a quarentena é fundamental, mas seria interessante olhar para essa medida com mais cuidado, entendendo que a proteção social é uma forma de solidariedade com o próximo, principalmente com aqueles que estão nos grupos de risco. Assim, valorizaríamos o enfrentamento coletivo do problema, e não apenas uma ação individual de isolado do convívio com outros indivíduos ou com parte da sociedade.
Mesmo após meses de uma assustadora escalada no número de infectados, esta reflexão ainda se faz necessária – e fica claro que o problema não é apenas sanitário. Nas últimas semanas vimos bares lotados e frequentadores ofendendo fiscais da Prefeitura, durante uma ação de combate à aglomeração. A cena de um casal dizendo: “cidadão, não! Engenheiro civil, formado, melhor do que você!” reflete essa lógica deturpada.
O pior é saber que tudo isso está acontecendo aqui, no segundo país com mais óbitos registrados por coronavírus, atrás apenas dos Estados Unidos. Em tempos tão espinhosos de pé no pescoço, mais de 70 mil mortos pela Covid-19 e cerca de oito milhões de reais roubados por agentes públicos, provavelmente capitaneados pelo ex-secretário de Saúde, fica realmente cada vez mais difícil de respirar.
Em mais uma noite de insônia me pergunto se é possível voltar à vida normal depois de todo esse estado de coma.
Enquanto a política, a economia e a sociedade de modo geral seguem tentando respirar sem aparelhos, cabe a todos nós refletir, lutar e buscar esperança nos múltiplos exemplos de resiliência suburbana.
Foi em meio a esse percurso de resistência que o amigo Luiz Claudio, geógrafo, documentarista e cineclubista do coletivo Subúrbio em Transe, sugeriu que eu assistisse a um longa-metragem exibido no 7° Festival Internacional de Cinema de Brasília. O filme havia acabado de ser premiado como melhor filme do Júri Popular no festival.
Depois de assistir, confirmei a qualidade da produção, tanto pelo roteiro como pela fotografia – mas principalmente por se tratar de um documentário extremamente atual.
Com o título de “Encantado, o Brasil em Desencanto”, o filme de Filipe Galvon propõe um diálogo interessante para entender o que tem acontecendo no Brasil. Estão lá a precarização da educação, o desemprego, a violência e o risco à própria democracia.
A temática central dessa coprodução, feita pela Public Sénat e LaClairière Ouest, trata da situação política e social do país entre a eleição de Lula, em 2002, e a de Jair Bolsonaro, em 2018. “Encantado” retrata a história recente brasileira a partir de olhares e depoimentos extraídos no bairro homônimo do subúrbio carioca.
Filipe Galvon produz, de forma etnográfica, um testemunho político e poético pela ótica suburbana de quem nasceu no bairro do Encantado e se tornou a primeira geração de classe popular a estudar no exterior – no caso dele, em Paris.
Galvon se mostra um diretor conectado com a realidade local e global, que se apropria do bairro do Encantado, suas paisagens e personagens, para contar a história da progressiva perda de conexão da democracia com as necessidades das classes populares.
Uma das falas iniciais do filme já indica que seguimos “como se fôssemos ao mesmo tempo espectadores e atores de um momento decisivo”. Acompanhadas de reflexões como “temos que inventar um outo país”, os depoimentos se cruzam e produzem uma rica narrativa entre grandes personalidades da política nacional e internacional e inúmeros brasileiros comuns que falam da sua desesperança com os rumos do país.
O filme acaba de ser lançado no Brasil e está disponível no Now, Vivoplay e na Skyplay.
Centenário da UFRJ
Outra dica suburbana: vale a pena acompanhar o Festival do Conhecimento UFRJ, que teve início no dia 14 e segue até 24 de julho. O evento se torna ainda mais importante por ser este o ano em que essa consagrada instituição completa seu centenário. Seja na Ilha do Fundão, onde o maior campus da UFRJ se localiza, ou no Maracanã, onde a Uerj celebra seus 70 anos de existência, os subúrbios e seus moradores seguem na luta.
No dia 17 teremos um grande encontro com os professores e pesquisadores Joaquim Justino, Luiz Antonio Simas e Marcio Piñon para falar de uma das principais formas de sociabilidade suburbana: as festas.
Que a força ancestral da luta suburbana nos motive, que nossa solidariedade seja um norte e que a fé na humanidade nos ajuda na reconstrução!
Este texto foi feito em parceria com a jornalista Sandra Crespo.
Rafael Mattoso historiador formado pela UFRJ, mesma instituição onde deu seguimento aos seus estudos, concluindo o mestrado em História Comparada e atualmente terminando o doutorado pesquisando a História da Cidade e do Urbanismo no Proub, Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura. É também organizador e autor do livro “Diálogos Suburbanos: identidades e lugares na construção da cidade”.