Cazuza vive. E renasce na voz do jovem cantor pernambucano Almério, que ao lado de Ney Matogrosso regravou a música “Brasil”. A escolha não poderia ser mais oportuna nesse momento de desgoverno, de índices astronômicos de mortes pela Covid-19 diante da falta de responsabilidade de um governo que insiste em não tratar a pandemia como coisa séria.
E Almério vem com tudo, numa interpretação visceral, emocionada, trazendo essa canção tão contemporânea para novas gerações, ao lado do “deus” Ney. O single vai ser lançado nas plataformas digitais agora no domingo de Páscoa, dia 4 de abril, data em que Cazuza completaria 63 anos. É uma explosão de emoções e dá pistas do que vem adiante. Em maio, Almério lança, pela Biscoito Fino, o álbum “Tudo é amor”, com onze músicas do artista que marcou a geração da redemocratização e que escancarou temas polêmicos e sensíveis, como a Aids, para todo o país.
“Eu não tinha ideia do quanto seria forte cantar Cazuza. A obra dele mexe demais com as pessoas. Precisei me preparar muito para encarar esse desafio, porque sabia que seria uma responsabilidade gigante trazer Cazuza de volta, ainda mais ao lado de Ney”, diz Almério.
Ele conta que foram necessários cinco meses de laboratório, ouvindo toda discos e lendo textos sobre a obra do cantor. “Precisava absorver o quanto pudesse dele, mas ao mesmo tempo, precisava me distanciar para imprimir minha personalidade”, explica.
Além da preparação para mergulhar num universo tão denso, cantar a primeira vez ao lado do ídolo foi outro desafio. “Ney é a personificação da arte. É um planeta, um astro luminoso. E um mar de generosidade”, diz. E o resultado é uma interpretação que explode entre a imensidão de Almério e seus sotaques pernambucanos, com sua “pegada agreste, mangue e gay”, como ele define, e a imensidão de Ney Matogrosso, que dispensa apresentações.
“Brasil”, composta por Cazuza, George Israel e Nilo Romero, foi uma espécie de manifesto político e social em um momento muito particular da nossa história. Vivíamos o período de redemocratização, com uma nova Constituição recém aprovada e um desejo imenso de deixar para trás um passado marcado por uma ditadura militar. Era hora de caminhar em direção à democracia e à liberdade, e Cazuza gritava aos quatro cantos que precisávamos de uma ideologia para viver.
Cazuza soube como ninguém mostrar o cinismo de um Brasil que se escondia por detrás de narrativas manipuladas, que buscavam disfarçar suas atrocidades, exatamente como agora. “Brasil, mostra a tua cara, quero ver quem ver quem paga pra gente ficar assim”, diz a letra.
O contato de Almério com a obra de Cazuza se deu quando ele tinha apenas 13 anos, em Altinho, cidade do interior pernambucano perto de Caruaru onde ele nasceu. Durante dois anos, o menino lia e relia o encarte com as letras das músicas de um CD de coletâneas que o irmão mais velho, Alexandre, havia levado para a casa dos pais. Mas família não tinha aparelho para tocar Cd, e Almerio só pode ouvir as músicas dois anos depois. Cazuza foi tão importante na formação musical dele, que nas noites de Caruaru, nos barzinhos onde começou sua carreira, Almério já cantava suas canções. “Quando minha amiga Ione Costa me perguntou um dia se eu sabia cantar ‘O Tempo Não Pára”, respondi que sabia de cor. E cantei essa e outras músicas de Cazuza. Foi quando ela me falou sobre a ideia que tinha tido sobre eu contando musicas dele”, segue contando.
Se o álbum foi uma ideia de Ione Costa, que realiza o projeto pela Parças do Bem, o desenvolvimento do repertório acabou sendo resultado do trabalho conjunto de quatro cabeças. Almério, a própria Ione, o diretor artístico Marcos Preto e André Brasileiro, empresário de Almério e coordenador de produção do disco, que já está pronto, aguardando a data do lançamento prevista para maio. E o próximo single da fila a ser apresentado é “Amor, Amor”, canção de 1986, do primeiro álbum-solo de Cazuza, “Exagerado”. Juntos, os quatro escolheram as onze músicas em “uma equação equilibrada entre hits, semi hits e músicas lado B”, como resume Almério.
“Ninguém fica imune à Cazuza. O disco vem para sacudir a gente, vem ativar nossas forças, nossas lutas por um lugar melhor, contra essa política de ódio que anda acontecendo por aí. Cazuza, até falando de amor, é política. Precisamos sair desse estado de necropolítica. Acredito que esse disco seja um gesto importante, uma força reagirmos a tudo isso”, desabafa o cantor por telefone, lá de Vila do Vitorino, interior do Agreste onde se encontra isolado digerindo seu novo filho.
Eu assino embaixo. Almério é potência, força de luta, a voz que vem das entranhas da terra desse Brasil que luta contra preconceitos, misérias e fascistas. Que presente de Páscoa Almério nos deu.
“Tudo é amor” – Ficha Técnica:
Idealização e Coordenação Geral: Ione Costa
Direção artística: Marcus Preto
Produção musical e arranjos: Pupillo
Músicos: André Lima, Fábio Sá, Juliano Holanda e Pupillo
Coordenação de produção: André Brasileiro
Produção executiva: Tadeu Gondim
Fotos e projeto gráfico single : Jorge Bispo
Stylist: Felipe Veloso
Realização: Parças do Bem
Rita Fernandes é jornalista, escritora, roteiristas e pesquisadora de cultura e carnaval.