Tempos estranhos, esses. Todo mundo olhando meio enviesado, procurando formas de contato que não seja o próprio. Toques de sapatos, sinais à distância, expressões de uma gentileza social desconfiada. Tarefas rotineiras, encontros sociais, reuniões de trabalho, aulas, festas, shows, peças teatrais, reuniões de condomínio, idas e vindas miúdas do nosso dia-a-dia, tudo cancelado por um tempo que a gente ainda nem sabe qual vai ser.
Esse novo vírus trouxe reflexão – não planejada, ok – mas que acabou se impondo. Como é que a gente faz para viver sem o convívio social? Tudo tem se resumido às atividades nas telas dos nossos smartphones, computadores ou tabletes. Trabalho em home office é uma delas, que tantas empresas ainda olham com desconfiança, acreditando que a produtividade não é a mesma porque a pessoa não está às vistas do seu controle. Estranhos tempos, esses.
No meio dessa confusão de coronavírus, fiquei pensando no carnaval. Hoje faz um mês da Terça-Gorda. Tão pouco tempo e tanta coisa aconteceu. Fiquei pensando em como seria se o vírus – ou a compreensão real do que ele é – tivesse chegado em terras brasilis durante a festa de Momo. Ainda bem que não chegou. Deve ter entendido que numa terra em que o carnaval é corpo e alma ao mesmo tempo, o estrago seria maior. Pois conter o espírito folião, ameaçado por uma criatura tão minúscula, provavelmente teria sido um esforço sem sucesso. Basta ver como as praias do Rio lotaram ontem, primeiro dia do confinamento. Imagine se fosse carnaval!
Não consigo deixar de pensar em João do Rio. O que diria ele, se vivo fosse, o autor que melhor descreve as ruas, esse lugar de encontros e desencontros. “Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma!”, escreve em seu A encantadora alma das ruas.
Isolada aqui na minha ilha familiar, me encontro fazendo exercícios de futurologia ao imaginar como seria o mundo sem as ruas. Como saberíamos, por exemplo, quais ruas são as honestas? E as ambíguas, as sinistras, as nobres, as delicadas, as trágicas, as depravadas, as puras, as infames, as ruas sem história, entre tantas outras como João do Rio descreveu? Como é possível conhecer a experiência da rua sem estar nela? A rua foi feita para juntamentos, a rua é a causa da diversidade dos tipos urbanos.
Ok, é primordial esse tempo de isolamento. Mas rezo para que ele seja muito breve. Necessário pela ameaça em si à nossa saúde e sobrevivência. Mas existe, para além disso, a saúde urbana, feita dessa confusão de idas e vindas das rotinas da cidade. Quero voltar ao convívio dos anônimos. Preciso do prazer das rodas de conversa, das rodas de trabalho, das rodas sociais, das rodas de samba. A doença social que pode resultar de um mundo sem convívio também pode ser muito grave.
Passado esse momento, já me prometi que a primeira coisa que vou fazer, assim que o primeiro clarim anunciar que a felicidade está de volta, será ir ao Quintal de Madureira. Vou conhecer o Awurê – cujo nome vem do ioruba e quer dizer boa sorte – projeto que vai muito além de uma roda de samba.
Na página deles, me chamou atenção: “Não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”. É o significado de “Sankofa”, a celebração coletiva que estava marcada para o próximo domingo, mas que teve que ser adiada por conta desse minúsculo organismo estranho que tem nome parecido com o de cerveja, só pra nos sacanear. A música e a conversa de Sankofa serão transmitidas por live pelas redes sociais. Mas assim que isso tudo passar, eles vêm cheios de novidades, diz Fabiola Machado, cantora e uma das produtoras do projeto. Além do Quintal de Madureira, eles também estarão no Jardim de São Cristóvão.
Vai passar, tudo passa. E talvez esse momento difícil fortaleça nossos significados do que é viver em sociedade e nos ajude a ser mais generosos uns com os outros. Que assim seja. Awurê para todos nós.