Escravos da Mauá: fim de um ciclo do Carnaval
Três festas para celebrar o bloco: roda de samba do Prata Preta, na Praça da Harmonia (10), festa de 30 Anos (17) e roda de samba na Prainha (23/10)
O Carnaval de 2023 não será igual àquele que passou. E talvez esse seja um dos textos mais difíceis que eu tenha que escrever. O bloco Escravos da Mauá, o nosso bloco azul e amarelo que desfilava no domingo anterior ao carnaval, anunciou recentemente que não vai mais desfilar, deixando a cidade mais triste com o fim de um ciclo importante do carnaval de rua. A notícia caiu como uma bomba no meio, que não entendeu como um dos mais bonitos e importantes blocos da cena carioca podia terminar assim, de uma hora para a outra. Justo quando teremos de novo o carnaval de rua, após dois longos anos de reclusão pandêmica. Mas tudo tem sua razão, e os diretores entenderam que o fim de um ciclo se anunciou.
Para marcar esse encerramento, três homenagens. A primeira é sábado (10), às 17h, quando o bloco Prata Preta, que surgiu na esteira da ocupação da região portuária seguindo os Escravos da Mauá, faz homenagem ao bloco azul e amarelo na Praça da Harmonia. A segunda, já com ingressos esgotados, é a festa dos 30 Anos dos Escravos da Mauá (17), no Circo Crescer e Viver, na Praça Onze. Como a capacidade da casa foi atingida rapidamente e muita gente ficou de fora, o bloco decidiu fazer uma roda de samba (23/10), às 17h, aberta e livre, no Largo de São Francisco da Prainha, a sua “sede social a céu aberto”, local de onde o bloco saía e realizava suas famosas rodas de samba.
Fundado em 1992 por um grupo de profissionais do Instituto Nacional de Tecnologia – o INT, que fica ali na região portuária -, o bloco foi o responsável por dar visibilidade àquela área, que estava totalmente abandonada pelo poder público. A Praça Mauá era completamente diferente do que é hoje, sem a exuberância dos museus, do Amanhã e MAR.
“Onde hoje está o Museu do Amanhã havia um píer interditado, abandonado. Um terminal rodoviário e uma delegacia da polícia civil ocupavam o prédio onde atualmente navega exuberante o MAR, Museu de Arte do Rio. O elevado da Perimetral e os maltratados armazéns portuários escondiam completamente a vista da Baía de Guanabara. A Mauá era um lugar de passagem cuja verdadeira identidade, construída mais de cem anos antes, andava escondida, perdida no trânsito dos que vinham e seguiam distraídos, para algum outro lugar”, relata a carta aos foliões que o bloco publicou nas suas redes sociais para anunciar seu encerramento.
“Não é que tenha terminado, a gente sentiu que era o momento oportuno para fechar esse ciclo, porque quando um se fecha, abre-se outro. É um momento de celebrar a trajetória de 30 anos e, quando a gente lembra de tudo, de alguma forma, temos a sensação de termos cumprido um papel e agora é o momento para dar espaço”, explicou o presidente do bloco Escravos da Mauá, Ricardo Sarmento Costa.
O bloco mais lírico do Rio
Conhecido por seus sambas que destoam totalmente dos atuais, de cadência acelerada, o bloco Escravos da Mauá sempre honrou as raízes do samba fincadas naquela região, com 26 sambas compostos por eles, todos líricos, melodiosos. “Boa companhia faz o dia clarear, amizade é o melhor remédio”, “Alô me diz como é que faz, pra não morrer durante a seca. Como a lagarta do sertão sabe resistir, e sai voando borboleta”, “Desce o morro, Conceição, tira as pedras do cais do meu coração…”, tantos e tantos sambas que aprendemos a cantar ali no calor dos desfiles, letras imensas, melodias difíceis, a cara dos Escravos da Mauá. E a gente cantando tudo…
“Em particular, para nós, que estávamos na condução de um bloco carnavalesco, a história do samba e de seus baluartes, João da Bahiana, Donga, Sinhô, Pixinguinha, Tia Ciata, tornaram-se enredos obrigatórios. Foram 26 sambas feitos sob medida para celebrar essas raízes. Os infames navios negreiros e suas dores, o cais do Valongo e os armazéns da Camerino, os cortiços, o bota-abaixo, a Revolta da Vacina na praça da Harmonia, o Almirante Negro na Revolta da Chibata, a estiva, a formação do movimento sindical, a Rádio Nacional, as boates da Praça Mauá, a influência portuguesa e dos indígenas, os artistas de rua, a evolução urbana da cidade, a Central do Brasil, dentre tantas outras imagens e lembranças”, diz o texto da carta.
Em 1998, o bloco produziu um CD-Room (sim, naquela época era o que havia de mais moderno!) intitulado Circuito Mauá: Saúde, Gamboa e Santo Cristo, hoje atualizado e reinventado no site que estão inaugurando na data da festa de 30 anos.
E foram inúmeras as rodas de samba do bloco, estreladas pelo Fabuloso Grupo Eu Canto Samba, e que contaram com participações pra lá de especiais de outros “fabulosos”, como Beth Carvalho, Aldir Blanc, Moacyr Luz, Claudio Camunguelo, Luiz Carlos da Vila, Walter Alfaiate, Zé Luiz do Império, Xangô da Mangueira, Zé da Velha, Simone Lial. Pensar hoje nessa ocupação de um território que está povoado de bares e de manifestações culturais pode parecer banal, mas não é. Ninguém estava ali, ninguém acredita naquele território.
Os Escravos da Mauá desbravaram aquele território e se conectaram com importantes projetos como o a Cia de Mysterios e Novidades, responsável pela pernas-de-pau mais esplendorosas de todos o carnaval, com suas fantasias incríveis, diabos, pierrôs, colombinas, arlequins, baianas, yemanjás. Tudo o que veio depois na representação circense ligada aos blocos de rua bebeu na fonte dos Escravos. Tudo! O abre-alas preparado cuidadosamente por Lygia e Marilia, da Cia, era de tirar o fôlego e de matar de emoção.
Outras interseções aconteceram com o Spetaculum, de Gringo Cardia, com a escola de fotografia de Mauricio Hora, no Morro da Providência, e com blocos da região, como o Coração das Meninas, Pinto Sarado e outros muito antigos por ali.
Nos desfiles, invariavelmente o bloco cantava, na porta do Sindicato dos Estivadores, a música “Mestre Sala dos Mares” (Almirante Negro), de Aldir Blanc, como na gravação original que foi censurada na ditadura, para homenagear João Cândido, o líder da revolta da Chibata. “Salve, o Almirante Negro”, e nos enchia os olhos de lágrimas porque parecia que o tempo parava ali e trazia toda a força daquela “revolta” nas nossas vozes.
Descrever os desfiles dos Escravos da Mauá não chega perto do que foi viver os desfiles do bloco. Como no último, em que, sem sabermos que o fim estava perto, vivemos uma catarse coletiva inexplicável. Todo mundo aprendeu o samba da borboleta durante o desfile. Um samba bem diferente de tudo o que o bloco sempre fez, uma metáfora dos tempos vividos com a eleição desse último presidente, fazendo um paralelo de como há vida, apesar de tudo, no sertão. O desfile terminou com uma tempestade digna da melhor ira de Yansã. Céu fechado, nuvens carregadas, trovoadas e relâmpagos e um mundaréu de água. Era o céu lavando a cidade, último ano do então prefeito Crivella, que queria tudo na cidade menos o carnaval. Eu cantei do início ao fim, pulmão aberto e grito solto, como que pedindo a Deus que nos trouxesse um novo amanhã.
A retomada do carnaval de rua e a Sebastiana
Tenho a honra de dizer que o Escravos da Mauá é um dos blocos fundadores da Sebastiana, a liga de blocos de rua que presido e que surgiu em 2000, como parte importante do movimento de retomada do carnaval de rua, que teve impulso no ano de 1985, com os blocos Simpatia é quase amor e Barbas.
Mesmo com o fim do desfile, a participação do Escravos na liga se mantém, pois o bloco tem a intenção de continuar a fazer suas rodas de samba e outros projetos ligados à cultura do carnaval e do samba e também à memória da história da cidade, do qual é parte.
O site dos Escravos, com toda a história do bloco, será lançado no dia 17 de setembro, quando haverá a festa de celebração dos 30 anos. E vem com todos os registros dos sambas, dos desfiles, da interação com o território.
Eu me despeço, com nó na garganta, de um dos blocos do meu coração. Vou sentir saudades dos nossos desfiles, dos nossos encontros, do samba cadenciado e lindo, de estar ali tão pertinho de pessoas que eu amo tanto e que tenho o mais profundo respeito. Mudaram o história da cidade. Mudaram o nosso carnaval. Nos vemos no dia 17, e convido a quem quiser vivenciar tudo isso de pertinho, a se juntar a nós no Largo de São Francisco da Prainha, no dia 23, quando os Escravos da Mauá ocuparão, para sua despedida, o lugar que tanto os acolheu.
Rita Fernandes é jornalista, escritora, presidente da Sebastiana, pesquisadora de cultura e carnaval.