Deve ser minha Lua em Aquário que me faz cruzar com pessoas como Eulícia. Digo isso porque ter contato com o álbum de estreia dessa compositora, Vou jogar meu amor na tua cara, que vai ser lançado nessa sexta (12) é realmente estar conectada com algo muito novo.
Eulícia, esse nome tão diferente, vem estampado logo de cara na capa do disco. Algo nada comum no mercado fonográfico, que geralmente destaca os intérpretes. Eulícia não canta nenhuma das 11 canções do seu disco. Ao contrário, entrega cada uma para intérpretes que dão ainda mais alma ao que ela cria. É isso, um disco de compositora, e está aí a novidade.
Vou jogar meu amor na tua cara é o título, pinçado da primeira música, “Lava de Vulcão”, na voz dos incríveis Caio Prado e Almerio. Impossível não ficar impactado com a frase: “Mexeu comigo, se prepara!”. A letra é incrível e a melodia traz tons de bolero, xote, mas também de música árabe, o que eu já gostei. E Eulícia diz logo a que veio e dá vontade de fazer o mesmo que a letra da música diz: “vou fazer contigo a imensidão”.
Acho que nunca vi um disco de compositora. E todo o álbum é uma delícia, com as vozes muito especiais de intérpretes contemporâneos como Almério, Ana Costa, Caio Prado, Fred Martins, Illy, Juliana Linhares, Lívia Nestrovski e Fred Ferreira, Marcos Sacramento, Patrícia Bastos, Pedro Miranda, Salomão Soares, Soraya Ravenle e Vidal Assis. Só essa escolha já valeria a pena. Mas tudo no disco é sofisticado, diferente, cheio de personalidade, autoral. Das composições – letras e melodias dela mesma -, à direção artística de Phil Baptiste e da própria Eulícia e a produção musical e arranjos excepcionais de Elísio Freitas em quase todas as faixas. O álbum celebra também o primeiro lançamento do selo musical Areia Música.
Uma voz, muitas vozes
Mesmo sem cantar, a voz de Eulícia está ali o tempo todo, nos múltiplos gêneros que a influenciam: o xote, o bolero, a milonga, o samba e o extenso naipe de música brasileira. E aquela sonoridade moura-ibérica que se mostra em canções como a de “Lava de Vulcão”, com o cello de Federico Puppi, a bateria de Lúcio Vieira e timbres eletrônicos de Elisio Freitas, e em “Alma”, essa ainda mais evidente, interpretada por Fred Martins, sobre o arranjo de percussão, guitarra, baixo e rabeca, instrumentos tocados por Elisio.
O bolero “Já deu” é uma delícia, que repete arranjos de cello de Puppi e traz a voz cheia de malícia da baiana Illy. A milonga “Equilíbrio Vacilante” vem com a delícia e o contraste entre Juliana Linhares e Marcos Sacramento. Juliana, pra mim, é a melhor cantora dessa nova geração.
O som de uma fita K7 sendo rebobinada abre “Rewind” (nem sei se os mais jovens sabem o que seja isso!), interpretada por Soraya Ravenle com muita teatralidade, em sintonia com a letra e um arranjo musical que Eulícia chama de “vaudeville”.
O samba, ligado às origens familiares, se materializa em “Tempo ao tempo”, na voz de Ana Costa, em versos como “O que sonhei, já nem lembro/ O que sei que sou não sou mais”. Depois vem o “Xote italiano” com um Pedro Miranda muito à vontade em versos poéticos e bem-humorados como “E eu já misturo Cartola e Caruso” e “E não cabe a tarantela no meu xote tão chinfrim”, com a espetacular participação do violino de Carol Panesi. Faixa do disco produzida por Luís Filipe de Lima com arranjos de Salomão Soares, “De repente” encerra o álbum na voz doce de Vidal Assis, apenas com o piano de Salomão.
“Vou jogar meu amor na tua cara” é uma delicia de viagem sonora. É também um ato de coragem, em um mercado nada afeito a esses arroubos femininos de uma compositora que arrisca mostrar a sua cara. O álbum pode ser baixado em qualquer uma das plataformas musicais a partir de hoje. Para quem gosta de novidade e de música de alta qualidade, eu super recomendo. Vai lá!
Rita Fernandes é jornalista, escritora, presidente da Sebastiana, pesquisadora de cultura e carnaval.