Floresceu e brilhou no palco do 30º Prêmio da Música Brasileira
Em noite carregada de emoção, no Theatro Municipal, a premiação retornou depois de quatro anos, mostrando a força e a resistência da música brasileira
A primavera floresceu no palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro na noite do 30º Prêmio da Música Brasileira, no último dia 31. E quem é da cultura sabe o que isso siginifica. Depois de quatro anos marcados pelo desmonte da cultura, agravados por dois anos de pandemia, era de se esperar que a celebração traduzisse o sentimento de vitória e de renovação tão esperado, pela resiliência de uma classe que aprendeu a sobreviver nesse país.
Certamente aquela cerimônia será lembrada por muito tempo e por muitas coisas. Pela premiação de artistas como Alaíde Costa – que recebeu o Prêmio de Lançamento MPB pelo disco O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim, uma produção de Marcus Preto, Pupillo e Emicida, quanto merecimento! –, Erasmo Carlos (in memorian) e outros, e pelo menos por três outros fatores que merecem ser destacados: a homenageada, Alcione, a “Marrom”, que mais do que merece esse reconhecimento em vida, com seus 50 anos de carreira; o ineditismo de encontros musicais, com o melhor em termos de pluralidade da música brasileira atual; e a vibração de um cenário cheio de flores, assinado por Gringo Cardia, além de um troféu inspirado na Vitória-Régia, que resumem a alegria desse retorno. Zé Mauricio acertou em cheio e em tudo.
O roteiro, apresentado por Lázaro Ramos e Felipe Netto, com a participação da atriz Lilian Valeska no papel de Alcione, contou e cantou a trajetória da cantora maranhaense, a partir de suas histórias de família, da carreira e das fotos, feitas principalmente por Antonio Guerreiro, além dos muitos hits que fizeram da Marrom quem ela é. Alcione é uma artista do povo, intensa e dramática, que canta as dores e as mazelas das paixões e do cotidiano dos relacionamentos sem colocar disfarces. Impossível não cantar junto a estrofes como “Não posso mais alimentar a esse amor tão louco”, em Sufoco, e “Não divido você com ninguém, não nasci pra viver num harém”, em A Loba.
Diante de um teatro lotado, foram passando sucessos como ‘Garoto Maroto’, ‘Minha Estranha Loucura’, ‘Meu Vício é Você’, ‘Nem Morta’, e sambas que se tornaram clássicos na sua voz como ‘Não Deixe o Samba Morrer’, ‘Rio Antigo’ e ‘Gostoso Veneno’.
Maria Bethânia e Gloria Groover marcaram um encontro inédito de duas gerações, que se completaram profundamente cantando “O Meu Amor” e que iniciou a série de apresentações. Destaque para o figurino de Gloria, em consonância com a elegância de Bethânia. Diante de uma titã como é Bethania, Gloria foi perfeita. Criolo chegou com “Garoto Maroto”, rapidamente acompanhado de Xande de Pilares, numa mistura incrível de vozes e estilos. Diogo Nogueira, de dourado como Alcione, acertou em cheio em “Rio Antigo”, numa mistura com os rapazes do Inova Samba.
Emicida, lindo de terno claro, teve a companhia de Fióti, em um contrapondo com sua saia vermelha e capa preta ao melhor estilo “Exu”, trazendo a força da África na interpretação das canções Agolonã e Laguidibá, marcadas pela batida dos tambores e tantãs de Pretinho da Serrinha e sua banda. Zé Ibarra preencheu o teatro com a beleza e afinação de sua voz, na conhecidíssima “Você Me Vira a Cabeça”, com Tim Bernardes e Fran que dividiram com ele o palco em “Me Ébano”, depois das apresentações solo de cada um. Seu Jorge, sem a presença de Isa que havia sido anunciada na programação, veio com “Gostoso Veneno”. Mas o ponto alto das apresentações, merecedor de aplausos de pé de toda a plateia, foi a interpretação arrebatadora de Ferrugem e Péricles em “Sabiá”. Ficou ali a certeza de que os dois, juntos, é uma das coisas mais bonitas que a música brasileira pode ter.
Caetano Veloso entrou sozinho no palco e celebrou a cantora com “Onde o Rio É Mais Baiano”, canção que já gravaram juntos. A baiana Luedji Luna trouxe de volta a ancestralidade africana com Afrekete e Figa de Guiné. E única apresentação que ficou aquém das expectativas nas homenagens prestadas à Marrom foi a de Marina Sena, com “Nem Morta, demonstrando que ainda falta à cantora experiência e traquejo para um palco daqueles. Acanhada e sem a presença de palco necessária para a força da homenagem, escolheu um figuro que não a ajudou no contexto de sua apresentação.
Alcione entrou no palco de dourado, puro brilho como ela é, fechando a noite, com aquele seu vozeirão jogando aos nossos corações “Magia do Palco”, canção emblemática ao que acontecia ali, e os super sucessos “Pagu”, “A Loba”, “Sufoco” e “O Surdo”. Delírio e êxtase, para quem foi ali ver a Marrom. Ao cantor, compositor e DJ Pedro Sampaio, queridinho da garotada, coube o encerramento da festa, com “Não Deixe o Samba Morrer”, logo acompanhado de nada mais, nada menos, que a escola de samba do coração da homenageada, com a bateria da Mangueira
Flores, cores e Vitória-Régia: a nova primavera do PMB
Prêmios, vozes e encontros musicais à parte, a cenografia de Gringo Cardia e a nova marca do Prêmio – que virou troféu –, desenvolvida por Luisa Annik Beauchamps e Julia Iunes, completaram o conjunto criativo e o brilho da noite.
Gringo, que faz o Prêmio há 28 anos, trouxe flores diversas, fechando com Beatriz Milhazes, em uma celebração ‘bem pra cima’, como ele diz. Simplesmente magnífico todo o cenário, com muito colorido, igual ao da própria noite. As flores eram projetadas no palco a cada apresentação, tendo cada número musical uma diferente como tema.
“Esse ano o Prêmio foi muito especial porque ele marca a sua volta, depois de três anos, por causa da pandemia e pela falta de apoio. Então eu pensei que tínhamos que fazer florir, renascer. Depois do inverno sempre vem a primavera, né, e é isso que estamos vivendo com esse retorno. Além do quê, combina muito com a Alcione, que apesar de ser uma cantora dramática, é muito positiva, auto astral”, diz Gringo Cardia.
Em paralelo, a urgência e o desejo de uma nova marca, que traduzisse todo esse contexto em que o Prêmio estava sendo realizado. Inspirada na Vitória-Régia, nossa planta amazônica, Luisa Annik (24), filha de Zé Maurício Machline, e Julia Iunes, amiga de faculdade em Londres, desenvolveram uma nova ideia que acabou se transformando também no troféu da premiação.
“A gente achou que fazia todo sentido uma transição da marca, com uma cara fresca e que refletisse esse novo momento. Eu e a Julia pensamos que ela tinha que traduzir a essência do Prêmio e o que ele se propõe a fazer. Deveria ser uma coisa muito brasileira, que tivesse as características de abrangência, de ser um mapa que traduz a capilaridade do Brasil afora, de captar todos os ritmos, as regiões, de contemplar todos os artistas e de mapear ao máximo o que é lançado. Mais do que isso, marcar que é um prêmio que quer ir atrás da alma brasileira, traduzir essa alma sensível, essa musicalidade, essa coisa orgânica que é a nossa cultura, tão forte, tão resistente”, conta Luisa.
A designer assinou também, junto com sua equipe de animadores, as vinhetas dos indicados ao PMB que foram projetadas no telão, com muitas cores e flores, em harmonia com o cenário digital criado por Gringo. Tendo vivido em Londres, a designer reúne experiência em edição de vídeos e animações no trabalho no Luke Halls Studio, para a exposições como “Hallyu: The Korean Wave”, no Victoria & Albert (Londres), “Amy Beyond the Stage”, no Design Museum, e “Come Home Again”, instalação da artista Es Devlin em Londres.
Completando o conceito de sustentabilidade do PMB, os troféus foram feitos de forma artesanal, a partir de uma resina produzida com plástico de materiais recicláveis, em parceria com o designer de objetos Luiz Bunheirão.
“Quando a Luisa me fez a desafiadora proposta de criar o novo troféu, eu sugeri fazer de uma forma sustentável. Chamei a pesquisadora Maria Ignes Vasconcellos, uma amiga que trabalha com resíduos de plásticos encontrados na areia da praia e que participou do projeto internacional Cool Globes, sobre o aquecimento global. A ideia foi pegar esse plástico lixo, moer até virar pó e colocar numa resina. Com isso, demos uma reutilização para esse plástico, tirando da natureza e transformando num troféu totalmente artesanal. Depois de pronta, cada peça foi trabalhada a mão’, explica Bunheirão.
Todos os agradecimentos a Zé Maurício Machline por essa enorme realização, com a certeza de que, sim, depois do inverno vem a primavera, celebrando a alegria, a cultura e a democracia. E claro, aos patrocinadores iFood e Santander, que acreditaram e apoiaram tornando possivel.
Rita Fernandes é jornalista, escritora, presidente da Sebastiana e pesquisadora de música, cultura e carnaval.