O carnaval de rua precisa de editais próprios
A retomada cultural está movimentando diversos setores, mas o carnaval dos blocos ainda carece de linhas de fomento próprias para a sua sobrevivência
A cultura foi um dos setores que mais sofreu com as restrições impostas pela pandemia, e os artistas se viram sem oportunidades de trabalho por bastante tempo. Com a retomada do setor, a quantidade de eventos, projetos e principalmente festivais que vemos hoje em todo o Brasil parece estar muito além do público consumidor.
Junta-se a essa retomada a mudança de comando do país, com a eleição do presidente Lula, que trouxe de volta novos e atentos olhares para a cultura nacional, tão devastada na gestão anterior. O retorno do Ministério da Cultura, da Funarte e o fortalecimento de órgãos culturais importantes foram decisivos para a mudança estrutural que se anuncia para os próximos anos. Com isso, muitas leis e editais puderam ser lançados, em âmbito federal, estadual e municipal, o que aqueceu ainda mais este mercado.
Diversas linguagens estão contempladas nas leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc e em editais de fomento direto como os da Funarte e das secretarias estadual e municipal de cultura do Rio de Janeiro. Mas chama a atenção que, mais uma vez, fica de fora o carnaval. A única exceção é o edital da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado, que será lançado em breve, e que vai prever linhas de fomento voltadas para as diferentes representações do carnaval.
O jornalista Victor Belart é um dos que tem chamado atenção para isso na sua página “Cidade Pirata”. Organizadores de blocos e presidentes de ligas, como eu mesma e Rodrigo Rezende, da Zé Pereira, já cansaram de bater nessa tecla em eventos e seminários que têm o carnaval de rua como tema central. Há 14 anos, no seminário Desenrolando a Serpentina, de 2009, realizado pela Sebastiana no Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), foi tirado um documento com encaminhamentos ao então prefeito Eduardo Paes, em que se pedia, entre outras coisas, a criação de linhas de fomento para o carnaval de rua. Outras vozes se juntaram anos depois, mas até hoje nada de concreto aconteceu.
O modelo do carnaval no Rio é diferente do de outras cidades, como Recife e Olinda, por exemplo, que respondem por dois importantes carnavais brasileiros. Aqui, o carnaval está sob os cuidados do órgão de turismo, a Riotur, e não da cultura, como nessas cidades pernambucanas. Pode parecer bobagem, mas não é, pois é o lugar de onde saem as decisões. O encaminhamento do turismo é totalmente diferente do da cultura, e por isso mesmo o carnaval nunca é visto como uma linguagem cultural. Esse é um problema muito característico do Rio de Janeiro, onde desde meados do século XX, na gestão do prefeito Pedro Ernesto, as narrativas sobre o carnaval já o associavam ao turismo internacional.
“Ainda existe a possibilidade de os futuros editais da Secretaria municipal de Cultura fazerem uma linha para blocos, mas a impressão que fica é que não é do interesse mexer em uma pauta que está sob os cuidados da Riotur. Porém, sabemos que a Riotur é uma empresa de turismo e eventos, e que o carnaval é política de base e formação”, escreveu Belart em um post recente.
O movimento dos blocos de rua vai muito além dos quatro dias de folia. Basta ver a quantidade de agremiações que participaram de festas juninas na cidade – ou realizaram as suas próprias, como a Terreirada Cearense –, como também de grupos contratados para tocar em casamentos, eventos corporativos, festas de aniversário e festivais. Muitos desses músicos são artistas profissionais que dependem da manutenção das suas agendas.
É correto reivindicar ao prefeito Eduardo Paes e à secretaria de Cultura a criação de editais específicos que atendam a esse universo, hoje composto de mais de 500 grupos diferentes. Não dá para misturar tudo numa chancela “cultura popular” ou “folclore” – termo inclusive em desuso, para que julgadores avaliem entre coisas tão distintas como rodas de samba, folias de reis, Bois Pintadinhos, grupos de Clóvis, blocos de rua e outras manifestações que tantas vezes se misturam nessas “rubricas”.
“Temos (…) que pensar ou demandar mais o carnaval de rua dentro da secretaria de Cultura. Porque a Riotur é uma empresa de turismo, mas o carnaval de rua não acontece aqui apenas quando chega a hora do cortejo. Esse é apenas um recado, levantando ideias possíveis para um carnaval de blocos mais constante, porque, por hora, o que cabe é um bloco disputar com uma banda de rock, uma roda de samba, categorias unificadas em editais de apresentação. Sabemos que sairia barato para o Rio de Janeiro fazer projetos mais específicos e educacionais envolvendo o carnaval de rua”, escreve Belart.
Há nos blocos de rua uma profunda interseção com a educação. Os grupos dão aulas e fazem oficinas de percussão, de sopros e outros instrumentos, com forte caráter agregador, principalmente sobre a criançada e a juventude. É trabalho de base, é trabalho de longo prazo, para formação de uma sociedade mais justa, mais igualitária, a partir de uma expressão cultural que, sem esforço, cumpre esse papel.
Pois a hora é essa. Tentar formar opinião de gestores públicos e de legisladores de que o carnaval merece, sim, o seu espaço nas esferas municipal, estadual e federal. É preciso lembrar que dentro do carnaval há também muitos carnavais. E que carnaval é de todos e para todos, talvez uma das mais democráticas manifestações culturais do povo brasileiro. Se nada disso bastar, vale recorrer ainda aos números: no Rio, o carnaval faz girar mais de 3 bilhões de reais na economia carioca. É emprego e renda pra muita gente, a maioria delas fora da cadeia produtiva do próprio carnaval. Fica aí a reflexão.
Rita Fernandes é jornalista, escritora, presidente da Sebastiana e pesquisadora de cultura e carnaval.