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Rita Fernandes

Por Rita Fernandes, jornalista Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Um olhar sobre a cultura e o carnaval carioca

O carnaval que acabou também começou

Fim de alguns blocos traz reflexão sobre ciclos de carnavais e o quanto essa festa é tão orgânica como a própria sociedade

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Atualizado em 14 mar 2025, 07h47 - Publicado em 13 mar 2025, 15h12
Casamento da porta-bandeira Alinne Prado, do Imprensa Que Eu Gamo, aconteceu há 11 anos no bloco.
Casamento da porta-bandeira Alinne Prado, do Imprensa Que Eu Gamo, aconteceu há 11 anos no bloco. (Divulgação/Divulgação)
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O Suvaco do Cristo desfila pela última vez no dia 8 de fevereiro de 2026. Com suas cores azul e verde, o bloco “pop” do Jardim Botânico se despede do carnaval carioca tendo realizado 40 carnavais. Com muitas e muitas histórias pra contar, como a da prisão dos diretores porque a Cúria não queria que o bloco tivesse o nome de Cristo. Dá um aperto no peito, mais uma vez, ver blocos tão tradicionais como o Suvaco, que participaram do movimento de retomada do carnaval de rua na década de 1980, encerrando suas atividades. Doeu também quando, neste último carnaval, se despediram Imprensa Que Eu Gamo, do qual sou uma das fundadoras, e o Meu Bem Volto Já, em que fui uma das primeiras baianas, com as nossas roupas azuis.

Há muita história nesse caminhar, entre nós que fizemos parte de um mesmo movimento. Não à toa e nem por acaso, somos juntos os fundadores da Sebastiana, a primeira associação de blocos de rua pós-ditadura. Naquele encontro no Bip Bip, reduto do samba em Copacabana que nos abrigou para uma das primeiras matérias sobre blocos no ano 2000, feita pelo extinto Jornal do Brasil, iniciávamos, sem saber, um movimento importante para a cidade. Barbas, Simpatia, Suvaco, Escravos, Bloco de Segunda, Imprensa, Meu Bem, Carmelitas, Nem Muda, Rancho Flor do Sereno, Clube do Samba, estávamos todos ali juntos para um encontro de amigos e foliões. Representantes de novos blocos que surgiam numa cidade sitiada pelas guerras de traficantes que começavam a se dividir em facções. Era Zaca e Cabeludo disputando o Dona Marta, por exemplo, de onde vinham nossos mestres de bateria e muitos dos ritmistas que fizeram parte de Barbas e Suvaco. Mesmo assim, diante de uma cidade partida, a gente fazia carnaval numa rua recém conquistada pela democracia.

Olhar pra trás traz nostalgia, mas também uma interessante visão do quanto que fizemos. Não tínhamos meta traçada, não tínhamos objetivo financeiro ou de qualquer outra natureza que não fosse a folia por ela mesma. Quantas histórias e quantas amizades para toda a vida surgiram deste brincar. E quantos “filhotes” vieram depois de nós, fazendo crescer cada vez mais esse lindo movimento de carnaval que acabou inspirando outras cidades do Brasil.

Escrevo esse texto na primeira pessoa porque sou parte disso. Não poderia trazer tudo isto de forma indireta. Uma das histórias mais emblemáticas foi no Imprensa Que Eu Gamo, um exemplo da construção afetiva que resultava da brincadeira chamada bloco de rua. Nesse último desfile, realizado no dia 15 de fevereiro, nossas porta-bandeiras estavam lá, revezando o pavilhão vermelho e cinza que nos representa. E foi especialmente emocionante celebrar com Alinne Prado seus 11 anos de casamento, relembrando uma cerimônia realizada ali na porta do Mercadinho São José, quando ainda era nosso ponto de partida. O casamento de Alinne e Bruno foi combinado em uma reunião do bloco, num bar, quando ela manifestou a dificuldade em conseguir um local que abrigasse tantos amigos. Alinne era apresentadora do Vídeo Show, na TV Globo, e desfrutava de muita popularidade.

Alinne Prado e Aziz Filho, porta-banderia e mestre-sala do Imprensa Que Eu Gamo, no último desfile do bloco.
Alinne Prado e Aziz Filho, porta-bandeira e mestre-sala do Imprensa Que Eu Gamo, no último desfile do bloco. (Publius Vergilius/Divulgação)
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“Por que não casa no bloco?”, provoquei. Montamos, com uma mistura de alegria e muita ousadia, um lindo casamento, com madrinhas e padrinhos, pastor, juiz de paz, família e mais de 10 mil foliões por testemunhas. Com a mesma fantasia que desfilamos, suados, acabados, fomos para a festa no extinto Casarão Ameno Resedá, que ficava ali no Catete. Pra quem não sabe, Ameno Resedá foi um dos ranchos mais importantes do início do século 20, e que acabou dando nome à casa de shows criada, em 2009, pelo economista Carlos Lessa.

Quando relembro essas histórias, o que eu quero dizer é que carnaval sempre foi pretexto para a festa, para tecermos relacionamentos verdadeiros com uma gente que insiste em ser feliz, apesar de tudo e de tantos percalços. E foi assim também nos Escravos da Mauá, cujo derradeiro desfile em 2020 se tornou uma catarse emocional coletiva, sem que a gente sequer soubesse que aquele seria o derradeiro. Nos Escravos, a mesma tecitura de afetos, construída a partir das rodas de samba coladas na parede de onde hoje funciona a Casa Porto, no Largo de São Francisco da Prainha. No Barbas era a mesma coisa, quando ainda dávamos a volta no quarteirão voltando pela rua Álvaro Ramos. O bloco acabava e íamos para a casa do Nei Barbosa, ali naquela mesma rua, para a macarronada e o banho de piscina dos amigos do bloco. E era o momento mais esperado, quando era feita a resenha de tudo o que tinha rolado.

As escolhas de samba do Simpatia e do Suvaco, nas décadas de 1980 e 1990, no Clube Condomínio, no Jardim Botânico, se tornaram antológicas. Eram o programa mais esperado no período pré-carnavalesco. O Simpatia ensaiava no sábado e o Suvaco, no domingo. E não havia quem não disputasse a entrada no clube. Foi ali que o Suvaco começou a misturar ritmos diferentes do samba, dando início a uma novidade que só viria a explodir nos anos 2000, com o Monobloco. A introdução de MPB e de rock nacional no ritmo da bateria foi uma novidade que o Suvaco criou, tendo Lenine, Xico Chaves, Mu Chebabi, Macalé e Beto Brown como compositores de sambas inesquecíveis, como República dos Vira-Lata, de 1989.

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São histórias contadas em livros, como o de minha autoria, Meu Bloco Na Rua (Editora Civilização Brasileira), e em filmes, como “20 Anos de Suvaco” (Direção Paola Vieira) e “Barbas, o bar que virou bloco” (Direção Bruno Caetano), entre outros. Claro que o carnaval mudou. Ele é orgânico, reflexo da própria sociedade, com suas nuances, suas transformações, suas pautas e políticas. Então não tem como dizer que carnaval é uma coisa só. Nunca foi, desde os tempos do Império, e depois da República. E não existe nem melhor nem pior. Cada carnaval reflete o seu tempo. São novos blocos, novas folias. Com muita coisa boa por aí, como a Charanga Talismã, do Thales Brown, a recém fundada Orquestra de Rua, do Marcelo Cebukin, o 442, do Lucas Galantine, e toda uma galera jovem cheia de confiança nos seus corpos e escolhas, que traduzem os novos tempos. O mais importante é lembrar que há construção poética em todos os carnavais, que há verdade em quem faz por verdade e que o carnaval é essa miscelânea de coisas diferentes e diversas, e, acima de tudo, a maior expressão da festa.

Esse ano não vai ser igual àquele que passou. Mas nenhum é, não é mesmo? Então, pra quem é de carnaval, que você encontre um bloco pra chamar de seu. No coração, no espírito, na carne, não importa. Salve esse espírito de Momo que habita os nossos corações! E que sejamos felizes nas fantasias que escolhermos vestir em qualquer tempo, para além do tempo. Evoé!!

Rita Fernandes é jornalista, escritora, presidente da Sebastiana e pesquisadora de cultura e carnaval.

 

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