“Música é uma questão de sobrevivência da alma”, segundo Zé Maurício Machline, o criador do Prêmio da Música Brasileira, em 1987, que depois de um hiato de quatro anos realiza um dos mais importantes eventos da cena musical do país. No dia 31 de maio, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com muita expectativa e boa dose de emoção será realizada a sua 30ª edição. E os planos para fomentar ainda mais o panorama da música brasileira vão além: em 2024, ele vai lançar o seu festival, trabalho conjunto com a premiação.
O Prêmio da Música Brasileira tornou-se uma referência nacional nas últimas décadas, responsável por estimular a produção musical nacional. E também por revelar novos talentos, além de promover encontros e homenagens que entraram para a histórica. A última homenagem, em 2018, foi a Luiz Melodia, que havia falecido em 2017, e que somava cinco troféus. Esse ano, a homenagem vai para ninguém menos que Alcione, a “Marrom”, que completou 50 anos de carreira, num show que promete encontros históricos, como Bethânia e Gloria Groove, Xande de Pilares e Criolo, Emicida e Fióti.
Durante a pandemia, entrevistei Zé Maurício, em live promovida pela Veja Rio, e, diante daquele cenário tão incerto, ele não sabia quando poderia realizar novamente seu projeto. Agora, tivemos a oportunidade de uma nova conversa, com perspectivas e esperanças renovadas. Confira abaixo como foi a nossa conversa e o que vem por aí.
Depois de três anos sem realizar o Prêmio da Música Brasileira, como é para você esse retorno?
Zé Maurício: Esse retorno é importante em vários aspectos. Primeiro porque é uma contribuição ao mercado musical em que contemplamos artistas de todas as maneiras. Para se ter uma ideia, tivemos recorde de inscrições na história do prêmio: foram mais de 10 mil artistas inscritos no país. É um número completamente diferente de antes da pandemia, em que tínhamos cerca de 2.500.
E a que você atribui esse crescimento?
Zé Maurício: À possibilidade de democratização da música. Hoje, você tem uma facilidade de produção muito grande, porque os custos para se produzir música diminuíram muito, a tecnologia melhorou. Você tinha antigamente custos absurdos e, atualmente, com o computador e uma série de ferramentas eletrônicas, você consegue coisas muito boas. Depois, com a absorção dos streamings à música, todo mundo que quiser pode lançar sua música, de diversas maneiras. A facilidade de produção, o custo de produção é bem mais barato, antigamente você precisava de um label, uma gravadora, para gravar sua música. Hoje você pode lançar da maneira que quiser. Via gravadora, mercado tradicional, ou não.
Você acredita que essa democratização beneficiou mais artistas novos, ou acabou ajudando também artistas que já estavam no mercado e puderam ampliar seu alcance?
Zé Maurício: Eu acho que ajudou o mercado como um todo. Evidentemente que a absorção dessas novas tecnologias é muito mais fácil para as pessoas mais jovens, porque elas têm acesso e conseguem manejar instrumentos de computação e de informações através da internet com muito mais facilidade do que as pessoas mais velhas. Mas não limita, por que a grande maioria dos artistas, inclusive artistas tradicionais, que não são via streaming. Então essa “democracia”, vamos usar esse termo, ela é muito utilizada pelo mercado como um todo.
Essa democratização acaba mudando o perfil do Prêmio e das categorias contempladas?
Zé Maurício: Das categorias não muito, porque a música tem vários aspectos, ritmos. E aí ela vai mudando de acordo com o que vai se fazendo de ritmos novos. Mas essa democratização facilita muito a pesquisa. E mais do que isso, através dos streamings, você consegue se aprofundar em muita coisa relacionada à música, ao artista.
E você, como uma pessoa que acompanha e pesquisa a cena musical há tantos anos, o que destacaria? Como você avalia o cenário musical brasileiro?
Zé Mauricío: É difícil destacar alguma coisa, mas acho que o Brasil tem uma dimensão tão grande e uma musicalidade tão apropriada para cada uma das regiões do Brasil, é muito impressionante ver os nossos sotaques, em termos de musicalidade. Existem músicas com o “cheiro” e com a “terra” das regiões muito forte na maneira de fazer, na sua fabricação. Se você passar pelo Pará, por Pernambuco, por Minas Gerais, por Goiás, pelo Rio Grande do Sul, você vai ver músicas de uma autenticidade, de uma força no sentido de letras, poesia e composição melódica inigualáveis. São poucos os países que têm tantos sotaques como os nossos, fazendo uma música tão rica. Eu destacaria todas essas regiões, mais do que um artista propriamente.
E junto às essas regiões, você faz algum destaque às sonoridades, algum tipo de musicalidade nova, que tenha surgido? Como isso se reflete no Prêmio?
Zé Mauricío: A música urbana – tudo o que a gente qualifica no Prêmio como música urbana –, é muito rica e líder de inscrições. Tem uma representatividade muito grande, ela vai desde o rap, hip hop, funk. Isso hoje talvez seja a música de maior produção no Brasil.
E fora desse contexto da música urbana?
Zé Mauricío: A música sertaneja brasileira, o sertanejo de todas as formas é muito forte, muito importante, tem muita gente fazendo essa vertente e são artistas de grande excelência. E ela vem abençoada pelo Rolando Boldrin, pela Inezita Barroso, Almir Sater. É uma música de muita importância e para o mercado, até chegar nessas grandes duplas, Maiara e Maraisa, Marilia Mendonça, uma representatividade imensa do país.
E entre as novidades, você mudou as categorias de cantor e cantora para intérprete. Isso acompanha mudanças de comportamentos sociais?
Zé Mauricío: Sim, eu acho que tudo tem que acompanhar as mudanças. Se a pessoa não tem o seu gênero mais definido na carteira de identidade, porque vai ter num prêmio de música. Não importa mais o gênero, são intérpretes.
Todo ano tem um artista homenageado no Prêmio, e esse ano será Alcione. O que levou você a essa escolha?
Zé Mauricío: Alcione tem uma representatividade musical muito peculiar. Ela é uma cantora de jazz originalmente, que ao longo da sua carreira foi passeando por tudo o que existe na música. Alcione canta desde o Boi-Bumbá do Pará, passando pelo Boi do Maranhão, até o samba, até a música mais regional, à mais sofistica melodia de jazz, com uma sabedoria inigualável. Depois são cinquenta anos de carreira, feita por uma lutadora, um ser humano brilhante em todos os aspectos. Eu acho até que a gente está fazendo essa homenagem um pouco tarde, porque ela é merecedora de todas as homenagens há muito tempo.
Para cantar a trajetória de Alcione, você escolheu vários artistas de muitos estilos, fazendo inclusive misturas interessantes, como Bethânia e Gloria Groove, Emicida e Fioti. Com você imaginou essas misturas?
Zé Mauricío: Por causa da diversidade da musicalidade dela. Como ela tem a capacidade imensa de cantar tudo, eu quis mostrar o quanto a musica dela pode ter vários tipos de interpretações. Ela é uma cantora que tem muitas pessoas que já a homenagearam, cantando o repertório dela, e eu quis ter possibilidades novas. Por que eu acho que a música precisa disso, esse encontro de Bethânia e Gloria, por exemplo, vai ser um acontecimento, como de Xande de Pilares e Criolo. Essa universalidade da música é a essência da Alcione.
Temos visto uma proliferação de festivais pelo Brasil afora. Como vê esse movimento e o que podemos esperar pela frente em relação ao Prêmio da Música Brasileira para 2024?
Zé Mauricío: Isso é uma abertura maravilhosa para o mercado brasileiro, que se restringia a pouquíssimos festivais. E dá uma opção imensa ao público. A gente vai percebendo, pelos lines ups, que todo mundo tem possibilidade de encontrar suas plateias. Eu acho isso importantíssimo. O Prêmio, no ano que vem, deverá fazer o seu festival também, a partir sua curadoria. Aguardem!
Rita Fernandes é jornalista, escritora, pesquisadora de música, cultura e carnaval.