Rita Fernandes

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Um olhar sobre a cultura e o carnaval carioca
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Samba e fé: as rodas de samba dos quilombos que cantam aos orixás

Quilombo do Grotão, Terreiro de Crioulo e Escritório da Mata Egi Omim são quilombos e terreiros que ficaram conhecidos por suas rodas de samba

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Atualizado em 20 jun 2023, 15h35 - Publicado em 20 jun 2023, 13h02
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  • A luz dos candeeiros se acende às 18h. Todas as lâmpadas são apagadas, deixando o ambiente quase no breu. O ato é para lembrar, sob a única luz que poderia iluminar as senzalas e os terreiros, da luta e da resistência dos povos pretos. A música muda completamente nesse momento, saindo dos sambas de raiz e pagodes conhecidos para cantos de terreiro, exaltando os orixás. Nessa hora a gente segue junto, pedindo a Xangô por justiça, a Oxóssi pela caça diária e a prosperidade, a Oxalá pela benção suprema. Isso é o Quilombo do Grotão, no bairro do Engelho do Mato, em Niterói, sob a música do projeto “Saudação aos Tambores, do compositor Mingo Silva.

    Samba e fé, o  binômio que marca esses espaços, que há algum tempo abrigam algumas das principais rodas de samba. Localizadas em quilombos e terreiros, chamam a atenção por serem um movimento cultural que, com ênfase no samba e na gastronomia de senzala, mais conhecida como feijoada, colocam em evidência a luta dos povos pretos contra o preconceito e contra o racismo estrutural. Quilombo do Grotão, em Niterói, Terreiro de Crioulo, em Realengo e Escritório da Mata Egi Omim, em Santa Teresa, são alguns desses lugares que merecem a nossa visita e o nosso olhar.

    Roda de Samba – Quilombo do Grotão
    Cada domingo é uma roda de samba que se apresenta sob as bençãos dos Pretos Velhos e dos Caboclos. (Rita Fernandes/Arquivo pessoal)

    Estive no domingo (18) no Quilombo do Grotão, no bairro do Engenho Velho, em Niterói, dando início a uma série de matérias sob o título de Samba e Fé. O Quilombo do Grotão é um dos projetos mais bonitos que já vi. No meio do Parque Estadual da Serra da Tiririca, o espaço é cercado de mata por todo lado. Embaixo de telhas e palhas, há três salões de mesas que se distribuem em torno da roda, no salão principal. A feijoada é servida aos domingos antes do samba, e feita no fogão a lenha que fica ali também. As rodas de samba se alternam em cada fim de semana, no sábado e no domingo, com projetos importantes como o Samba da Comunidade e a Roda de Samba das Mulheres do Quilombo.

    No terceiro domingo do mês, o que eu fui, é sempre o projeto “Saudação aos tambores”, do compositor e percussionista Mingo Silva, que às segundas-feiras compõe a mesa de músicos do Samba do Trabalhador. “O projeto teve início ali mesmo, no Quilombo, e tem, na sua essência, a união de culturas e etnias, e o objetivo de realçar a luta do povo negro, a ancestralidade e a equidade entre os povos”, diz Mingo, que é acompanhado de Raphael Lagoas (voz e percussão), Daniel Boechat (percussão), Phelipe Ornellas (cavaquinho e voz) e Leo Fernandes (violão 7 cordas), além de convidados.

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    Renatão do Quilombo, como é conhecido Renato Gomes da Costa, é quem lidera o projeto. Neto de Manuel, herdou a terra do avô e foi lá que, junto a sua família, estabeleceu o projeto que é hoje centro cultural com oficinas e apresentações, além de bar e restaurante, com o samba aos sábados e domingos. Renatão arregaça as mangas todo fim de semana para, junto do sobrinho Alexandre, fazer os 15 quilos de feijoada e atender as mais de 300 pessoas que aparecem por lá. A irmã, Sonia Maria, cuida da lojinha de artesanatos, onde se encontram bonecas africanas, bolsas e outros produtos de tecidos. Cristina, esposa de Renatão, é responsável pelas bijus afros, com brincos e colares de palha e pedra, entre outros produtos com design lindo e materiais muito simbólicos na lojinha logo na entrada.

    Renatão do Quilombo
    Renatão do Quilombo é o líder do projeto, que tem oficinas, rodas de conversa, lojinhas de bijus afro e artesanatos, e a feijoada com roda de samba. (Rita Fernandes/Arquivo pessoal)

    “Tudo por aqui começou na defesa do nosso território, há mais de 20 anos. Quando diziam que éramos invasores da terra, eu dizia que éramos uma comunidade muito antiga com direitos à terra. Aqui tinha sido também um terreiro de Umbanda e meu avô era um dos líderes, passando depois para minha irmã Mariazinha, que já faleceu. E o feijão foi o início de tudo, pois nós nos reuníamos aos sábados para comer a feijoada e arrecadar dinheiro para a nossa associação. Daí foram chegando as parcerias, a capoeira, o Choro Malandro”, vai contando Renatão, enquanto percorremos a galeria de fotos e imagens na área da memória, com alguns dos mais importantes nomes da resistência preta no Brasil e no mundo.

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    Ali, nas entranhadas abertas na terra do barranco, estão dois altares, um para os Pretos Velhos e outro para os Caboclos. Acima, as fotos com imagens de Luiz da Gama, D. Ivone Lara, Machado de Assis, Maria Firmina, Tia Ciata, Grande Otelo, Martin Luther King e muitos outros.  Ali também está exposta a carta de D. Irene Lopes Sodré fazendo uma cessão de uso da terra para plantação de bananas a Manuel Lisboa da Costa, o que daria prova, já no século 21, de que eram legítimos donos do lugar no processo de certificação de Quilombo e povo quilombola, emitido pela Fundação Palmares em 2016.

    A parede de memórias e tributos a quem passou a vida lutando pela liberdade do povo preto.
    A parede de memórias e tributos a quem passou a vida lutando pela liberdade do povo preto. (Rita Fernandes/Arquivo pessoal)

    Tudo se completa e faz sentido com os projetos apresentados, que levam os nomes de Samba da Comunidade, Saudação aos Tambores, Ritmos de Senzala, Samba de Mulheres de Quilombo, Samba entre Amigos e tem até o Bloco do Quilombo, na época do Carnaval. As oficinas, gratuitas e para os moradores do bairro, são de percussão, conga, bijus afro e capoeira. Tem também os Encontros dos Jongos, Rodas de Conversa e outras programações.

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    “As rodas de samba são realizadas sempre em homenagem ao orixá do mês”, explica Renatão. Em junho, como era de se esperar, os louvores foram em nome de Xangô, ou São Pedro no sincretismo religioso quando fazemos a correlação com o catolicismo. Julho vai reverenciar dois orixás, Nanã e Oxumarê.

    O axé a gente sente logo que sobe a pé os 200 metros que vão da área de estacionamento até o Quilombo do Grotão. Prepare-se para uma subida a pé em estrada de terra, por isso vá de tênis. Se for para comer a feijoada, chegue no máximo até as 14h, para não enfrentar muita fila e salvar seu prato de feijão, que sai a R$ 40. Mas se não quiser almoçar, a pedida são os petiscos como a porção de linguicinha e aipim. A roda de samba começa sempre às 15h e segue com dois intervalos. Não vá embora antes do terceiro set, o último, pois às 18h as luzes dão lugar às lamparinas ou candeeiros, acesos um a um. Tudo muda nessa hora e só indo lá pra saber. Os Pretos Velhos, Boiadeiros, Caboclos e Seu Zé se tornam presentes. Nas vozes, nos sons dos instrumentos, na mata, nas mesas, na chama de cada lamparina acesa e sob a cabeça de todos nós, abençoando para que possamos recomeçar a vida na segunda-feira.

    Quem quiser conhecer toda a programação do Quilombo basta ir no Instagram @quilombodogrota. Quem quiser saber mais sobre o Saudação aos Tambores pode procurar em @saudacaoaostambores.

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    Na próxima coluna trago o Terreiro de Crioulo, dentro desta série “Samba e Fé”. Axé pra todos, uma ótima semana! Asé!

    Rita Fernandes é jornalista, escritora, presidente da Sebastiana e pesquisadora de música, cultura e carnaval.  

     

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