De repente uma falta de ar. Não são os sintomas do Covid-19, pelo menos é o que eu acho. É a vida seguindo o seu curso diante dos meus olhos, com seus acontecimentos. Tudo vem com sonoplastia e a música parece ainda mais presente, como trilha de filme, pontuando, dando contornos ou sendo protagonista.
De repente é a perda de um amigo querido, no meio dessa loucura. É a forma como tudo está acontecendo, como as restrições a um enterro digno e às nossas despedidas. Ontem perdemos Lauro Mesquita, amigo de tantos carnavais. Integrante do bloco Escravos da Mauá, Lauro era pura alegria. Comandava aos sábados a roda de choro da Pracinha da General Glicério, e de lá veio a trilha para o Lauro, na música Benguelê, que ele sempre encerrava as apresentações com seu Pixin Bodega, grupo que formou. Que saudade dos nossos carnavais!
De repente, acontece de a gente conhecer uma nova pessoa e estabelecer com ela uma profunda conexão. Uma surpresa conhecer, à distância, Isabela Moraes, a Belinha, que me tirou o fôlego com suas canções. Seu canto é único, suas músicas mexem com as emoções, já tão à flor da pele. Seu primeiro disco, “Estamos Vivos”, foi lançado semana passada, em meio à essa pandemia. As canções parecem escritas para essa quarentena, potentes, viscerais, retratos da vida da gente.
A música “Do Contra” mexeu especialmente comigo, com arranjos lindíssimos que não me saem da cabeça, trilha de tantas histórias, minhas e das amigas. Fala de relacionamentos tóxicos que não conseguimos interromper. Me perguntando como Belinha compõe daquela forma, liguei pra ela.
“Tive uma criação muito rígida, meu pai nos mantinha trancados. Até 15 anos, eu olhava o mundo da sala de casa, onde aconteciam rodas de música e de poesia, que eu observava. Tive que criar meu próprio universo, dentro do meu quarto”, conta Belinha. Uma espécie de quarentena imposta durante sua infância por um pai zeloso demais.
“Você distante” foi outra das que ouvi sem parar, um xote delicioso, sob o violoncelo de Lui Coimbra fazendo as vezes de sanfona, que discorre sobre as vantagens de viver longe de quem nos atrapalha. “Pra nos perdoar” nasceu de um sonho que ela teve, chegou pronta, letra e melodia. São músicas que, segundo ela, brotaram da sua alma, construídas no universo cotidiano da sua própria família, em Caruaru.
De repente, olhar para a dor do outro é nos deparar com a nossa. Na longa conversa que tivemos, alimentada pelo desejo de entendimento daquilo que nos aproxima, fico sabendo que há muitas e muitas canções ainda, algumas escritas na adolescência, e ela canta pelo telefone uma pra mim. “Como pode ter composto isso aos 14 anos?”, pergunto, admirada com a maturidade daquelas emoções. E descubro que tudo chega pronto, como sopro divino para aquela artista. Ela sonha, ela sente e intui.
Caruaru, Emirados Árabes, Recife, São Paulo foram os caminhos percorridos. Estranha conexão entre uma cidade do interior de Pernambuco e um país tão distante, ainda mais para quem ficou presa toda a infância. E ela me explica que tudo acaba acontecendo pelas trilhas do destino e da confiança absoluta nas suas intuições.
O meu fôlego retorna às seis da tarde, quando acesso a live de Mariene de Castro, que ela chama de Resenha. Na tela, canta de forma linda “Ave Maria, rogai por nós”, convocando a mãe de todos para que nos abençoe. Em meio ao cântico, que mistura reza cristã à força da sua religião, o camdomblé, eu encontro o ar que precisava naquele dia tão intenso. “A vida está no sopro divino da respiração”, diz o rabino Uri Lam, convidado daquela live.
E assim, de repente, volto a respirar. E entendo que, com ou sem pandemia, a vida não para e só nos cabe continuar.
PS – Belinha, esse texto brotou quase que inteiro durante a madrugada. Deve ter sido sua inspiração. Obrigada!
Para conhecer o trabalho de Isabela Moraes:
https://open.spotify.com/artist/2KlYQP0PK8nkjj4hwFiVF4?si=9ah5Nfp1SuyX5u-BHKup7w
Rita Fernandes é jornalista, escritora, presidente da Sebastiana e pesquisadora de música, cultura de rua e carnaval.