Carlos Lyra, sócio fundador da bossa nova, costuma estrilar quando alguém associa sua escola musical ao Beco das Garrafas. “Eu não me apresentei lá. João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius também não. Que berço da bossa é esse que quatro dos principais nomes do movimento nunca apareceram por ali?”, perguntou ele, certa vez, a este escriba. Lyra tem lá suas razões, o que em nada desmerece a importância histórica do cantinho sem saída na Rua Duvivier, 37, Copacabana, reduto de boates onde, nos anos 60, deram seus primeiros passos grandes nomes da MPB, a exemplo de Elis Regina, Jorge Ben Jor, Wilson Simonal e Sylvia Telles, entre muitos outros. No Beco, no aconchego das boates Bottle’s Bar, Little Club e Baccarat, também viveu grandes momentos o samba-jazz, tesouro do repertório instrumental, um jazz à brasileira que não deve nada, em termos de inventividade, suingue e sabor, a variações do gênero oriundas de qualquer lugar do planeta. Ali brilharam talentos como o baterista Edison Machado (1934-1990), inventor do “samba no prato”, o baixista Tião Neto (1931-2001), o pianista Sergio Mendes e o saxofonista Hector Costita – que, após um intervalo de 54 anos, volta a tocar na Bottle’s. O show que se anuncia antológico, uma produção do portal Coisas da Música, acontece neste sábado, dia 18, às 22h30. A entrada custa módicos 40 reais e deve ser paga em dinheiro. Mais informações, ligue para 2543-2962 ou 96800-8683.
Costita, fora do palco conhecido como Hector Bisignani, é argentino. Em sua terra natal, tocou com conterrâneos ilustres como Astor Piazzolla, Lalo Schifrin (o compositor de temas de cinema como o de Missão Impossível, tá bom prá você?) e Gato Barbieri. Com 82 anos e disposição invejável, ele mora há quase seis décadas em São Paulo, onde cumpre animada agenda de shows – em boa parte com o guitarrista Joseval Paes, que vai acompanhá-lo neste retorno às origens carioca. Confira, abaixo, a lenda em ação e partes de um ótimo papo com ele.
COSTITA E PAES TOCAM “CHEEK TO CHEEK”:
O que o trouxe ao Rio de Janeiro? E por que acabou ficando?
Cheguei aqui em 1958, fazendo uma turnê que passou pelo Brasil todo e terminava no Rio, com um pianista escocês chamado, ai ai ai, me escapou o nome agora. Afinal, faz tanto tempo! No último dia da turnê apareceram dois músicos, o João Donato e o Chu Viana, contrabaixista, apareceram, deram uma canja com a gente, rolou um som legal. Depois dessa experiência, o Chu contou que ia para São Paulo e me chamou para tocar com ele, na Baiúca Roosevelt, outro lugar histórico, onde surgiu o Zimbo Trio, onde tocou o Walter Wanderley. Eu era muito jovem, não tinha maiores compromissos, ia voltar para Buenos Aires, mas estava muito interessado na música que estava acontecendo no Brasil. Pensei, bom, por que não? Fiz um contrato de seis meses que, quando terminava, ia renovando. Fui ficando, comecei a gravar, coisa e tal.
E como o Beco das Garrafas entrou na sua história?
Em São Paulo, em 1962, se não me engano, apareceram o (trombonista) Raul de Souza e o Sergio Mendes. Eles queriam me conhecer. E aí me convidaram para fazer parte de um sexteto, o Bossa Rio. A ideia era acompanhar desfiles de moda da Rhodia, tocar na Bottle’s e, de repente, gravar um disco. Eu pensei, puxa vida, isso vai ser bom. Só tinha fera no sexteto. Tião (Neto, contrabaixo), Edison Machado (bateria), Edson Maciel (trombone), Raul de Souza (trombone), Aurino Ferreira (sax) e eu. Tocávamos na Bottle’s. Era emocionante, o Beco tinha um barzinho do lado do outro. O pessoal que tocava na casa do lado vinha ouvir a gente, a gente fazia a mesma coisa. Era uma energia muito forte, Elis, Leny Andrade, Edu Lobo, Jorge Ben, um monte de gente se esbarrava a toda hora, nós nos encontrávamos num restaurante de madrugada, quando todo mundo tinha acabado de tocar. Era a nossa mesa cativa, a gente jantava, tomava uma cervejinha e trocava ideias sobre músicas. Foi uma época gloriosa.
Parte dessa história está registrada em discos históricos, como Sergio Mendes e Bossa Rio – Você Ainda Não Ouviu Nada, que deu grande impulso à carreira de Sergio Mendes, e seu álbum solo, Impacto! Que lembranças você tem da produção desses trabalhos?
Imagina o que foi gravar com esse time, o sexteto, no estúdio com o Tom Jobim como padrinho, cuidando de arranjos, lá dentro com a gente o tempo todo. Eu gravei Impacto! com um intervalo de poucos meses, isso foi em 1963, creio. Edison Machado, do sexteto, tocou bateria no meu disco. Impacto! ganhou uma dimensão histórica, há um tempo fizemos um show com o repertório do disco, com um sexteto, em São Paulo. Aliás, eu vou levar para o Rio outros discos meus, trabalhos mais recentes, para atualizar o pessoal (risos).
. Como vai ser o show na Bottle’s? Como funciona seu duo com o guitarrista Joseval Paes?
Estamos juntos há 24 anos, temos afinidade grande. Tem a ver com o que estamos conversando. Têm coisas que só acontecem uma vez na vida. Bossa Rio foi um encontro muito feliz, resultou nisso que sabemos. Com o Joseval tocamos a dois, às vezes em trios, quartetos. Aí no Rio seremos só nós dois. Serão dois sets, cerca de uma hora e meia cada um, como fazíamos naquela época antiga. No primeiro, vou tocar temas do Bossa Rio, alguma coisa da bossa nova. A segunda parte vai ser mais jazzística, com standards. Estão na lista Amor em Paz (Tom e Vinicius), Batida Diferente (Maurício Einhorn e Durval Ferreira), Corcovado (Tom Jobim), Nôa… Nôa… (Sergio Mendes), Depois, Take the A Train, Perdido, de Duke Ellington, Cheek to Cheek, de Irving Berlin.