“O teatro é uma arte erótica”: uma conversa com Camilla Amado
Depois de duas experiências profissionais com obras de William Shakespere – um Hamlet como atriz e um Otelo como diretora –, Camilla Amado volta aos palcos com uma peça do bardo. Desta vez, trata-se de uma comédia: As You Like It, batizado de Como a Gente Gosta na montagem dirigida por Vinicius Coimbra, que estreia na […]
Depois de duas experiências profissionais com obras de William Shakespere – um Hamlet como atriz e um Otelo como diretora –, Camilla Amado volta aos palcos com uma peça do bardo. Desta vez, trata-se de uma comédia: As You Like It, batizado de Como a Gente Gosta na montagem dirigida por Vinicius Coimbra, que estreia na quinta (7), no Teatro dos Quatro. A trama narra as desventuras da jovem Rosalinda (Priscila Steinmann), do banimento da cidade, passando pelo disfarce sob uma nova identidade até encontrar o amor na Floresta de Arden. Pedro Paulo Rangel (reencontrando Camilla no palco 42 anos depois de atuarem em As Desgraças de uma Criança, de Martins Pena), Gabriel Falcão, Patrícia Pinho, João Lucas Romero, Alexandre Contini, Xando Graça e Jitman Vibranovski também integram o elenco.
Em conversa com o blog, Camilla falou longamente sobre as personagens (sim, as) que vive na peça, modernizações de clássicos, seu trabalho como preparadora de elenco, jovens atores, Viviane Araújo, beijo gay e a dedicação de uma vida ao teatro – que ela define como “uma arte erótica”. Confiram:
A senhora, assim como quase todo o elenco, vive mais de um personagem na peça. Quem são eles?
As personagens com que estou trabalhando são interessantes. Uma, Ada, velha, servidora de dois amos, que, ao contrário do Arlequim de Goldoni, escolhe um deles, o mais frágil, explorado pelo irmão mais velho, salva-o com as economias de uma vida inteira de trabalho e foge com ele para a floresta, onde vive e canta suas aventuras. Sua fala mais importante: “Vou morrer bem, sem dever nada a ninguém.” Outra, Audrey, é uma jovem pastora, livre como uma cabrita solitária, que quer se prender a alguém, fazer parte de alguém, ter um marido. Sua fala mais importante: “Graças a Deus sou feia, você pode se casar comigo!”
Por que a decisão de colocar os atores para interpretar mais de um personagem, e o que isso trouxe para o clima da encenação?
O ator pode ser intérprete de várias personagens, porque ele não é nenhum deles. Presença no teatro é ausência do ator e presença do público. O ator não leva sua própria personalidade ao palco. Persona em latim quer dizer máscara. Personalidade, máscara para a sociedade. Personagem é a imagem da máscara construída pelo ator a partir do ponto de vista do diretor. No teatro, a ficção do autor ganha a vida real, com a projeção do inconsciente do publico. Diferente a cada dia, que preenche a ficção escrita pelo autor. O inconsciente do público flui simultaneamente ao do ator e acontece a fusão, o gozo dos inconscientes. Como no sexo de qualidade. O teatro é uma arte erótica.
A peça está sendo anunciada como uma montagem “contemporânea” do texto de Shakespeare. Que liberdades foram tomadas e como a senhora lida com essas “modernizações” de clássicos?
Vamos ao zoológico para ver a beleza das feras, protegidos de sua perigosa ferocidade pelas grades das jaulas. O animal está preso. Vamos ao teatro ver de perto o animal homem, protegidos de sua perigosa ferocidade pelo ritual do teatro, também jaula, pelo rigor exigido pela arte. A diferença é que, no palco, o animal está livre. Teatro é um exercício de liberdade com responsabilidade. Cada um sabe de si. Não tenho nada a dizer. Shakespeare, sendo quem é, certamente respeita ainda a liberdade, a diferença do outro.
A senhora tem um trabalho sólido como preparadora de elenco. Como vê a jovem geração de atores?
O interesse fundamental do jovem é pelo autoconhecimento. Conhecimento do ser humano, que é indivíduo. Conhecimento que o liberta do isolamento e o aproxima da própria necessária e inalienável solidão.
Em seu trabalho como preparadora de elenco, qual é a deficiência mais comum percebida nos atores, de maneira geral?
Não se prepara um elenco. É um processo de mútuo reconhecimento. Depois disso, minha tarefa é lembrar o que os grandes me ensinaram: a) decorar o texto, b) não confundir oxítonas (tônica na última sílaba), paroxítonas (tônica na penúltima sílaba) e proparoxítona (tônica na antepenúltima sílaba), c) respirar nos pontos e não nas vírgulas e d) não esbarrar no cenário.
Em uma entrevista, a senhora declarou que a Viviane Araújo tem muito talento como atriz. Que dotes a senhora vê na atuação dela?
O carisma, o dom, o conhecimento do ser humano, a disponibilidade verdadeira para novos aprendizados, a pessoa pura e extraordinária que o povo brasileiro reverencia. Uma grande mulher, fiel a si mesma, simples , íntegra, não vendável. Fora a beleza, claro. Nada que todos não saibam, e que os invejosos não ataquem. Fui com a mãe dela assistir ao desfile na Avenida. Vi muitas escolas passarem com suas belas rainhas de bateria. De repente, um clamor na Avenida. Um breve e profundo silêncio e, de novo, o clamor, a alegria sem ruído, o som das almas e palmas em perfeita e feliz sintonia. Inebriada pela magia, perguntei à mãe da Viviane, ouvindo o som da multidão e vendo a pista ainda vazia: “O que está acontecendo?” A mãe me olhou sorrindo: “Minha filha está entrando na Avenida.” Inesquecível.
Que outros atores ou atrizes sobre os quais recai certo preconceito, como a Viviane Araújo, a senhora vê como talentosos?
Todos os que têm a coragem de enfrentar a angústia da responsabilidade da escolha e enfrentar o medo de ser diferente, todos que não se deixam massificar serão alvo dos ataques dos invejosos. O invejoso ataca. O preconceito é a inveja. Quem não inveja um negro, um homossexual que se assume, um índio? Um solitário músico ou escritor? Um artista para valer? Spinoza, o filósofo, define alma como “coisa singular”. Para ser singular, conhecer sua alma, há de se suportar a solidão. O pânico de ser único. Todos que conseguem serão alvos dos preconceituosos.
Em 2013, durante a cerimônia do prêmio APRT, a senhora deu um beijo na boca da Fernanda Montenegro, antecipando o beijo que ela daria na Nathalia Timberg na novela. Como vê a polêmica em torno da cena do beijo?
Com compaixão. Tanta gente com medo de viver a própria vida…
Sendo essencialmente, uma atriz de teatro, pergunto: dá pra viver dos palcos? Como a televisão e o cinema entram nessa equação?
Viver com o teatro é sempre maravilhoso para quem só é feliz no teatro. O teatro protege nossa criança. Viver com calma financeira , com uma direção, dono do seu pedaço, está difícil. Desde que vereadores e agora o prefeito invadiram nosso território, nos assaltaram, nos roubaram a liberdade de viver ou ao menos sobreviver com dignidade, com mínima independência, desde que a força da televisão, compreensivelmente, seduziu e reduziu a classe teatral. Desde que o leilão de nossa bilheteria foi oficializado, desde que qualquer estudante de qualquer coisa, qualquer um, mesmo rico, invade nossa casa, pega o que quer, paga quanto quer com apoio oficial e político, desde que com o aumento do preço das entradas para pagar o aluguel dos teatros nos prostituímos por paixão, como drogados, que se auto destroem porque não conseguem viver sem a droga, afastamos do teatro seu verdadeiro público que nos sustentava, mas que não pode pagar mais do que 30 reais a inteira e 15 a meia entrada. Este público numeroso nos alimentava em longas temporadas de muitos meses, anos, muitas vezes. Temporadas estas reduzidas hoje a dois meses, e só com patrocínio, patrocínios estes, sem diretrizes básicas. Encontramos nosso público que conhece e acompanha o teatro, não como programa social, mas como referência da condição humana. Encontramos nosso querido público às escondidas, como amantes clandestinos, nas lonas, no CCBB, onde a inteira é 6 reais e a meia, 3 reais (na verdade, é 10 reais e 5, respectivamente). Temos, às vezes, a sorte de sermos atendidos, sim, atendidos, porque estamos feridos, pelo Sesc, cuja direção luta por nós, mas quem de nós luta pela direção? E Barbara Heliodora, nosso cão de guarda morreu. E agora José?