As afinidades com o teatro do absurdo — além, claro, da nacionalidade romena — já levaram o autor Matéi Visniec a ser descrito por críticos europeus como “o novo Ionesco”. Em que pese essa credencial, o dramaturgo naturalizado francês ainda é pouco conhecido no Brasil, onde só teve uma peça montada, lá se vão catorze anos: Pequenos Trabalhos para Velhos Palhaços, com direção de André Paes Leme. A situação começou a mudar no fim de 2012, quando a Editora É Realizações começou a publicar por aqui a obra teatral completa de Visniec. Dois dos textos já lançados, O Último Godot e O Rei, o Rato e o Bufão do Rei, fisgaram a atriz Guida Vianna. O primeiro mostra um insólito encontro entre Godot, o personagem que nunca aparece em Esperando Godot, e o autor da peça em questão, Samuel Beckett. No outro, é apresentado um rei deposto e sua relação com seu bufão. A partir da próxima quinta (20), ambos serão encenados em sequência no palco do Poeirinha, com Guida dividindo o palco com Gilberto Gawronski, também diretor do espetáculo. Até o dia 23, as sessões em esquema de pré-estreia, uma espécie de ensaio aberto — a estreia de fato do projeto 2 x Matéi, como foi batizado o programa duplo (fotos acima e abaixo), está marcada para o dia 28.
A convite do blog, Gawronski escreveu um texto exclusivo sobre o projeto. Confiram:
Mergulhar na obra de um escritor é conhecer um amigo. Na minha adolescência, a leitura de Caio Fernando Abreu era um alívio. Fazia com que me entendesse e compreendesse melhor o mundo. Foi com muita alegria que soube que meu grupo de teatro em Porto Alegre iria levar à cena Pode Ser que Seja Só o Leiteiro Lá Fora, um texto teatral de Caio F. — após dez anos proibido pela censura. Me debrucei na construção do personagem Baby, imprimindo um gestual todo referenciado nos desajustados, figuras tão presentes na obra deste autor que tanto adorava. Na noite de estreia, tremia sabendo que Ele — assim mesmo, com letra maiúscula — estava na plateia. E nunca esqueci quando aquela figura magra, de voz grossa, entrou no camarim e me disse: “Você criou um personagem muito maior do que aquele que escrevi.” Encontrei aí a contribuição do ator.
Daí surgiu uma longa parceria. Anos depois, já morando no Rio, orientado por Hélio Dias para dizer Dama da Noite, outro texto deste mesmo escritor, criei a personagem Dana Avalon. Vivi com essa personagem por quinze anos. Me apropriei daquele texto de tal forma que, certa vez, cheguei a receber um telefonema de Caio F. pedindo que tirasse algumas dúvidas em relação às entonações do seu próprio texto. Ele havia sido convidado para realizar uma leitura pública de Dama da Noite na Feira Literária de Frankfurt. Ao voltar de lá, ele me disse que as indicações tinham ajudado muito e que a própria Dana Avalon teria “orgulho de ouvi-lo”.
Minha primeira experiência como diretor profissional foi com um outro texto de Caio, Uma História de Borboletas. Montei ainda três outros textos dele. Ou seja, 6 x Caio. Com outros autores também me aventurei mais de uma vez. Foram 3 x Daniela Pereira de Carvalho, 3 x Vera Karam, 4 v Rogério Blat, 2 x Koltès, 2 x Nelson Rodrigues, 3 x Tchekov, 3 x Shakespeare. Todos amigos de muito respeito.
No ano passado, Guida Vianna me apresentou dois textos de Matéi Visniec. Logo vislumbrei criar 2 x Matéi. E assim começa uma nova amizade. Estou encantado como ele toma o universo teatral, tão nosso particular, e faz dele metáfora da própria existência. Ele se apropria da dramaturgia universal para criar uma dramaturgia pessoal, da mesma forma que nós, diretores, transpomos para o palco nossa leitura de determinado autor. Ou da mesma forma que nós, atores, usamos nossas vivências para dar vida a uma personagem. Iludindo o outro de que podemos ser outro. Revelando ao espectador um aspecto de nós mesmos através daquele ser que está em nós. Esta tem sido a árdua tarefa de construir Matéi. Dolorosa e prazerosa.
No primeiro texto, interpreto um autor de teatro. Eu, que sempre me ative a decorar textos e descobrir intenções, tenho agora a missão de construir este ser que escolhe as palavras, que determina os conflitos. No segundo texto, encarno um rei, o que dita as leis, enfrentando assim toda uma complexa tarefa de exercer autoridade, assunto muito já presente em minhas sessões psicanalíticas.
Bom, agora quem poderá fazer de nosso reino um lugar que produza bons frutos é o público. Espero que nossa dedicação desperte o interesse por esse autor romeno, e que ele crie muitos amigos no Brasil!