Passando por cima da timidez, Lucia, uma grande amiga minha, abordou sem meias palavras a Pequena Sereia numa festinha infantil, enquanto a filha se divertia com outras crianças:
– Você atende em casa?
– Perdão?
– Você poderia ir ao meu apartamento fantasiada?
– Olha, não faço esse tipo de coisa, não. Sou moça direita, de família. Com licença – reagiu Ariel, antes de virar as costas para Lucia, que só então percebeu o disparate do diálogo e a reação compreensível da moça de família vestida de princesa da Disney.
Consternada, foi atrás da sereia para se explicar.
– Ô, Ariel… Desculpa, não é nada disso que você está pensando – começou. – Queria que você fosse lá em casa para conversar com a minha filha, a Carol.
Resolveu explicar tudo, tintim por tintim.
– Número 1 a minha filha faz fácil, fácil. Já número 2 é a maior dificuldade. Prende até não aguentar mais.
– Sério mesmo que você está falando sobre número 1 e número 2 comigo?
– Estou. Pra você ver o grau do meu desespero – respondeu Lucia. – Já tentei de tudo. Falo que cocô é bom, que cocô é o máximo, que eu e o papai fazemos cocô todos os dias, assim como vovó e vovô e todos os priminhos. Não adianta. Botei até o Papai Noel pra falar com a Carol, mas ela não está nem aí para o Papai Noel.
– E onde entra a Pequena Sereia nessa história? O que a Pequena Sereia tem a ver com o cocô da sua filha?
– Preciso de um nome de peso, de alguém que faça a diferença na vida dela. E ela ama a Ariel. É sua princesa favorita.
Ariel olhava para minha amiga com olhos de interrogação.
– Eu só quero que você vá na minha casa fantasiada e converse com a minha filha.
– Sobre a importância do cocô?
– Exatamente! – vibrou. – Se a princesa que minha filha idolatra falar dos benefícios e das alegrias causadas pelo cocô, aposto que ela vai parar de prender.
Pequena Sereia estava cabreira. Provavelmente era a primeira vez que recebia uma proposta como aquela. Desconfiada, verbalizou:
– Não sei, não… Eu só tenho 20 anos, sou atriz, quero fazer novela, ficar famosa e ganhar dinheiro com publicidade, presença VIP, desfiles, quem sabe Playboy… Não sei se é bom ter no currículo um diálogo sobre cocô com uma criança.
– Imagina! Vai ser ótimo como experiência, vai testar sua capacidade de improvisação.
– O meu sonho é ser atriz, dona. Não nasci para ser psicóloga infantil. Aliás, não seria melhor chamar uma terapeuta pra conversar com a sua filha?
– Não… Queria tentar a Pequena Sereia primeiro. Poxa, Ariel… Quebra esse galho…
Diante da hesitação da princesa que sonhava ser atriz, Lucia apelou.
– Pago o valor da sua diária pra animar uma festinha como essa.
Ariel balançou, mas o dinheiro falou mais alto.
– Onde você mora?
Combinaram data e horário. Quando chegou o dia e a princesa adentrou sua casa, Carol mal podia acreditar no que viam seus olhos.
– Ariel! O que você está fazendo aqui? – perguntou, extasiada.
– Soube que você gosta muito de mim. Então resolvi fazer uma visita – disse a Pequena Sereia.
A menina voou na direção de sua princesa favorita e a abraçou com toda a força.
– Que emoção, né, filha? Não é todo dia que a gente recebe uma princesa. Ariel, você quer um café? Um bolinho de cenoura?
Deixou as duas sozinhas na sala por um tempo. Quando voltou, viu que a prosa tomava um rumo inusitado.
– Sei lá se peixe fecha o olho pra dormir. Como é que eu vou saber, garota?
– Você mora no fundo do mar, ué.
E então Lucia se viu na obrigação de intervir.
– Se quiser usar o banheiro depois do bolo, fica à vontade, Ariel.
– Obrigada, mas estou bem assim. Não gosto de usar o banheiro na casa dos outros.
A mãe de Carol arregalou os olhos, chocada e irritada.
– Jura? Porque bolo às vezes dá uma vontade enorme de ir ao banheiro.
Com a indireta, Ariel enfim percebeu que era chegada a hora. Meio sem jeito, deu início ao trabalho para o qual fora contratada.
– Ah, claro. Adoro ir ao banheiro.
– Também adoro – Lucia entrou no jogo. – E você faz de tudo lá, né, Ariel?
– Tudo o quê, mãe? – perguntou a menina.
– Xixi e cocô, filha.
– Cocô? – repetiu Carol, assustadíssima. – Você faz cocô, Ariel? – indagou, espantada.
– Claro. Todo mundo faz cocô e sabe os benefícios do cocô, filhota. Até a Ariel. Né, Ariel?
– Mas como você faz cocô? – insistiu a pequerrucha.
Ariel ruborizou. Era evidente: a princesa não estava nada confortável naquele papel.
– Como todo mundo faz, ué – respondeu, constrangida.
– Mas você não tem bumbum!
Só então Lucia percebeu o motivo pelo qual a filha venerava a Pequena Sereia. Para Carol, ela não ia ao banheiro.
A tensão tomou conta da sala. A continuação do estranhíssimo diálogo seria decisiva para o futuro intestinal de Carol e minha amiga não estava lá muito confiante na atuação da princesa.
– Quem disse? Tenho bumbum sim, mas fica escondido – escapou Ariel.
Aliviada, Lucia, com medo da próxima pergunta da filha, resolveu encerrar o expediente da Pequena Sereia. Levantou-se e caminhou na direção da porta.
– Então é isso, querida. Amamos a sua visita. Volte sempre que quiser! Dá um beijinho nela, filha.
As duas se despediram. Quando o elevador chegou, a princesa foi surpreendida pela pergunta derradeira da criança:
– Você toma banho todo dia?
Depois de apertar o botão do térreo, Ariel respondeu:
– Claro que não. Não preciso – disse, saboreando cada palavra e dando uma piscadela sacana para sua contratante.
Pronto. Ariel tinha se vingado de todo o constrangimento daquela tarde. Enquanto a porta se fechava, sorriu cínica para Lucia, certa de que jamais faria algo parecido novamente. Lucia percebeu na hora: trocara um problema por outro.
– Ouviu, né mãe? Cocô, tudo bem. Mas banho… nem vem! Não tomo nunca mais!