“Pai, esta floresta é amaldiçoada?”
A frase veio da caçula, ainda miúda, em sua primeira incursão à Mata Atlântica carioca, na trilha que dá acesso à Cachoeira dos Primatas, no Jardim Botânico. Ter um pai atento ao patrimônio ambiental da cidade não foi suficiente para livrá-la da potente narrativa de alguns clássicos infantis, em que a floresta muitas vezes representa a maldição e os caçadores de animais são heróis salvadores de mocinhas.
O movimento conservacionista trabalhou firme nas últimas décadas para tirar das matas um pouco da pecha de perigosa e ameaçadora. O lobo mau de nosso bioma, por exemplo, agora é bom: chama-se lobo-guará e está ameaçado de extinção. Já a minha pequena desencanou das princesas e, hoje, ama estudar numa escola escondida na Mata Atlântica, que se preocupa em formar cidadãos com consciência ambiental.
O debate evoluiu, e alguns governos já entendem que florestas prestam, sim, serviços ambientais essenciais à sociedade, como a proteção de mananciais, o ar puro e a prevenção de inundações. Encontraram até caminhos para valorar a contribuição, com cálculos complexos, de modo a manter florestas de pé com a ajuda da economia.
Mas, no Japão, desde 1982, a sociedade decidiu ir além do tangível em suas florestas para salvar a população de um grave problema de saúde pública chamado “karoshi”, nome dado ao fenômeno, comum por lá, da morte por excesso de trabalho.
O governo de Tóquio decidiu, diante da crise, estimular a produção de estudos para combater o problema. Pesquisadores identificaram, então, efeitos importantes para a saúde das pessoas na prática do chamado shinrin-yoku, um neologismo que significa “banho de floresta”, o que em outras palavras quer dizer mergulhar na natureza com o objetivo de se conectar integralmente ao ambiente.
Os resultados foram tão surpreendentes que a Agência Florestal do Japão incorporou a prática como política pública nacional. Desde então, o shinrin-yoku se ocidentalizou e ganhou novas leituras – a mais importante delas, a terapia florestal, fundada pelo americano Amos Clifford, é representada hoje pela Association of Nature and Forest Therapy (ANFT), entidade que já certificou mais de 2 000 guias em 66 países do mundo.
As florestas do Rio são a casa da única guia do Brasil certificada pela ANFT. A carioca Carla Zorzanelli, 35 anos, mestre em Ciências Holísticas pela Schumacher College, do Reino Unido, já guiou – muitas vezes remotamente, diante do confinamento – mais de 60 grupos apenas durante a pandemia da Covid-19, num tempo em que a saúde mental e espiritual voltaram à pauta em grandes cidades.
“Houve um aumento na busca por essa reconexão com a natureza. A volta ao natural, este movimento de rewilding, é uma resposta à crise do mundo. Um de meus trabalhos adicionais à terapia florestal é exatamente a proposta de restaurar a palavra ‘selvagem’, de retirá-la deste lugar do medo, de lugar desconhecido. A ideia é voltar a honrar a natureza como o local em que o ser humano viveu a maior parte de sua estada na Terra. A ciência tem contribuído na retomada dessa trilha perdida”, defendeu Carla.
O shinrin-yoku e a terapia florestal foram incorporados, de fato, pela academia. Além do Japão, países como Estados Unidos, China, Coréia do Sul e alguns cantos europeus viram suas universidades se embrenhar no tema – mais de 100 pesquisas na área foram publicadas nos últimos 15 anos.
Algumas descobertas fascinantes:
– As árvores e outras plantas liberam uma substância chamada fitoncida, que, uma vez inalada ou absorvida pela pele, aumenta a produção e melhora as funções das células NK (Natural Killers), ligadas ao sistema imunológico. O primeiro estudo foi conduzido nas montanhas de Nagano pelo imunologista Qing Li, com um grupo de pessoas monitoradas durante uma imersão de três dias na floresta.
– Há indicações claras de que as florestas e demais ambientes naturais regulam a pressão arterial de seus visitantes. Um dos estudos mais importantes foi conduzido pelo grupo do pesquisador Yoshifumi Miyazaki, da Universidade de Chiba, no Japão. Ele monitorou 26 funcionários de escritório numa incursão à floresta – a medição do pulso e de outros indicadores começou três dias antes, seguiu no dia da experiência e se prolongou por mais cinco dias. A pressão arterial de todos os participantes, seja sistólica ou diastólica, ajustou-se aos melhores níveis.
– Rachel e Stephen Kaplan, psicólogos da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, descobriram que estar na natureza por períodos prolongados estimula a criatividade, a memória e o desempenho cognitivo, além de reduzir a fadiga mental. Os estudos deram origem à hoje respeitada Teoria da Restauração da Atenção (em inglês, ART, Attention Restauration Theory).
– Miyazaki também estudou a influência das florestas no cortisol. Em sua pesquisa, ele identificou uma redução de 13% no hormônio diretamente envolvido na resposta ao estresse no corpo humano. Em outras palavras, caminhar em ambientes naturais tem relação direta e objetiva com a redução de estresse.
– Há, ainda, diversos trabalhos associados à redução da ansiedade e da depressão, até anteriores ao início do debate da Terapia Florestal. Um estudo do Centro Médico Universitário de Amsterdã, por exemplo, constatou que pessoas que usufruem a natureza regularmente têm chances 21% menores de desenvolvimento de depressão. Na Austrália, pesquisadores da Universidade Deakin conseguiram associar a redução da ansiedade com o impacto positivo da visita ao ambiente natural.
No rastro desses estudos, chegaram os médicos. Um número crescente de doutores tem receitado, em prescrições médicas formais, caminhadas na floresta. No Japão, a prescrição de banhos de floresta ocorre há bastante tempo. Mas é nos Estados Unidos que o tema tem ganhado mais força nos últimos anos: já há médicos prescrevendo natureza em pelo menos 34 estados americanos.
Um dos melhores exemplos é o estado de Vermont, frequentemente listados entre os melhores no ranking da saúde pública, que formalizou um Programa de Prescrição para parques, de modo a facilitar a ação de médicos e pacientes. Outros estados repetiram o exemplo, e está em andamento uma iniciativa nacional de prescrição de parques, chamada National ParkRx.
Novas iniciativas se espalham por todas as especialidades. Em 2018, de acordo com artigo da médica Amitha Kalaichandran, publicado no New York Times, o Instituto Hospital do Câncer, de Atlanta, passou a oferecer formalmente a seus pacientes um programa de terapia florestal.
O Brasil ainda não tem doutores formalmente certificados pela ANFT para a prática da Terapia Florestal, mas, de acordo com Carla Zorzanelli, um médico da Fiocruz está, neste momento, no curso de capacitação da entidade.
No Rio, não faltam espaços para a prática. É possível fazer a terapia florestal em qualquer ambiente natural, como explica Carla. “Já fiz sessões na Floresta da Tijuca, mas também no Parque da Cidade, no Parque do Flamengo e no Parque Lage. Na verdade, dá para se conectar no mar ou até mesmo no jardim de casa”, explica.
Seja lá qual for o ambiente natural, a cidade tem um potencial declarado para se tornar uma espécie de capital de uma nova relação entre a natureza e os cidadãos.
Vamos falar apenas das florestas literais, com árvores e umidade, por ser um patrimônio não tão explorado quanto as praias. Nosso território abriga o maior parque urbano do mundo, o Parque Estadual da Pedra Branca, na Zona Oeste, e um dos mais emblemáticos e belos, o Parque Nacional da Tijuca, que divide as zonas Norte e Sul.
Ao longo das duas unidades de conservação e também em outras florestas, estende-se a Trilha Transcarioca, com respeitáveis 183 quilômetros (ou 223, incluindo acessos) totalmente sinalizados e reconhecida como uma das 25 melhores trilhas do mundo pela revista americana Outside, referência mundial entre os esportes outdoor.
Sócio do Centro Excursionista Brasileiro e um dos criadores da famosa trilha, Pedro da Cunha e Menezes é autor de livros como o próprio “Trilha Transcarioca” e os dois volumes do celebrado “Trilhas do Rio”. Criado na Mata Atlântica carioca, Pedro conta que o município soma, em todo o território, mais de mil quilômetros de caminhos naturais que serpenteiam relevos da cidade dentro das florestas. Vem mais por aí:
“Está na hora de o Rio criar uma Transmendanha (na Serra do Mendanha, na Zona Oeste) e de conectar a Transcarioca até Niterói. Quando isso acontecer, teremos pelo menos mais 70 quilômetros sinalizados. O Rio tem um ativo raro para cidadãos e turistas, além de um grande remédio. É onde eu curo as questões da minha vida.”
Aqui em casa, no momento que escrevo este texto, sinto uma urgência danada de escapar dos pixels iluminados do laptop para buscar umas fitoncidas nas florestas da cidade. Acho que vou levar as filhas – não encontraremos bruxas nem lobos maus, é certo, mas voltaremos para casa recarregados de vida, prontos para seguir adiante.