As praias do Rio sempre tiveram uma discoteca de sons permitidos. São barulhinhos bons emitidos pela natureza, pelos singulares frequentadores dessa ponta da cidade ou mesmo pelas atividades reconhecidas como tradicionais nessas arenas.
Comecemos pelos necessários sons do patrimônio natural: o dominante marulho, o chiado das ondas escorrendo na areia, as pequenas explosões em dias de mar mais forte, o assobio das lufadas de vento entre barracas e cadeiras e até farfalhar dos pés caminhando em nossas areias de grãos variados.
Tem gente, sobretudo de manhã, que busca ali um barulho ainda mais refinado: o som do silêncio. Essa turma entende que a praia é, na verdade, um raro portal de saída do modo de vida urbano. E a areia, a transição entre cidade e natureza, apresenta-se como um lugar-santuário, um patrimônio natural a ser preservado na mesma medida em que alguém preserva a própria sanidade.
A magnífica cultura de praia do Rio, no entanto, deu legitimidade a alguns sons de seus habitantes mais frequentes. Tem o estampido das bolas de frescobol batendo nas raquetes, os gritos empolgados depois de uma grande jogada num altinho, vôlei de praia ou na nova febre das areias, o beach tennis.
Ao longo dos anos, ganhamos de presente também os essenciais “olha o mate, limão e mate!”, o “aaaaaaabacaxi!”, a já clássica corruptela “heinekê”, mistura de marca de cerveja com acento carioca, e tantos outros gritos dos guerreiros que torram no sol inclemente da praia em nome do sustento de suas famílias.
Todos são sons legítimos, que sempre se ajustaram democraticamente ao espaço da praia e de seus habitantes.
De uns tempos para cá, o ambiente da praia vem sendo contaminado por caixas de som portáteis de bluetooth. Ao ligar o aparelho, geralmente no volume máximo, esse tal banhista-boombox, que jamais entendeu o prazer de estar ali, transformou-se em mais um retrato escarrado de nossa falta de cidadania e de nossa incapacidade de entender que o limite é o espaço do outro.
Não é justo entrar no mérito da qualidade das músicas. Obviamente não se trata disso, e sim do direito de seu vizinho de barraca não querer escutá-las. Não vale aceitar o som que você gosta e reclamar do abuso da música que você chama de ruim.
A lógica do banhista-boombox é tão insustentável que, neste carnaval, um sujeito, provavelmente para fazer prevalecer a potência de seu aparelho, levou uma enorme caixa, difícil de carregar pela areia, e apertou o play no celular. Gerou a revolta dos demais, que tinham aparelhos menores. Sim, a guerra de paredes sonoras já começou nas areias do Rio. Ninguém mais ouve o sagrado marulho.
A ideia enviesada de que somos obrigados a escutar a música alheia também tem prevalecido em quiosques da orla. Em Copacabana, em Ipanema e no Leblon, há estabelecimentos que, nos fins da tarde, mesmo durante a semana, convocam animados DJs para também tentar transformar nosso mais emblemático patrimônio natural em boate.
A palavra boate, claro, vem do francês “boîte”, que quer dizer “caixa”. A ideia, nascida em meados do século XX, era criar um ambiente que reproduzisse o ambiente de uma caixa escura, fechada, sem janelas, onde não se soubesse se era dia ou noite. Não preciso ir muito longe, portanto, para dizer que praia definitivamente não é boate.
Se o banhista-boombox e os donos de quiosques não são capazes de entender, resta pedir que pelo menos a prefeitura do Rio faça a sua parte na esquecida ordem pública. Voltar a ouvir as ondas do mar virou, antes de tudo, um desafio civilizatório.