Começo de novo um caderno terapêutico. Como a Ana Cristina Cesar diz, é um papel que desistiu de dar recados. Nele eu sou eu e você é você mesmo. Todos nós. Digo tudo à vontade e ele responde e passa as chaves. Um caderno terapêutico é metálico e estala na boca. Hoje acordei pensando nos olhos de alguém e cuidando da alergia nos olhos da Lakshmi (que misteriosamente tem as mesmas alergias que eu).
Tudo isso me levou a um texto recheado de “talvez” para refletir sobre o foco. Você já pensou que onde você foca determina o que você vê? E mais: que a visão tem uma dependência muito grande do foco, e, portanto do valor, por que você foca aquilo que valoriza?
Nos Vedas, as escrituras sagradas mais antigas do hinduísmo, o mundo como ele é percebido é maya – uma ilusão. Acho que em boa parte do tempo estamos cegos pelos nossos desejos e em outra somos só incapazes mesmo de ver as coisas como são. E isso é tão verdadeiro que transcende a metáfora. Nossos olhos são ferramentas e nos ajudam a conseguir o que queremos. Porém, o preço que pagamos por essa utilidade, essa direção específica e focada é a cegueira para todo o resto…
Eu sei que isso não importa quando as coisas vão bem e conseguimos o que desejamos. Mas todo aquele mundo ignorado apresenta um problema terrível quando estamos em crise e nada acontece do jeito que imaginamos. A parte boa é que a solução está exatamente aí: uma vez que você ignorou tantas coisas restam muitas possibilidades para as quais você ainda não olhou. Grande parte da felicidade é esperança, não importa a profundidade do submundo no qual essa esperança foi concebida.
Imagine que você está desanimado porque não está conseguindo X. Talvez isso role pela razão do que você quer. Talvez o desejo esteja te deixando meio cego e aquilo que você realmente precisa está bem na frente dos seus olhos – e você não consegue ver por causa do maldito foco do momento.
Você olha para o mundo de maneira idiossincrática e particular. Você usa um conjunto de valores e conceitos para enquadrar algumas coisas e excluir a maioria. Foi tanto tempo moldando esses valores e ideias que eles se incorporaram em você. Alguns conceitos preestabelecidos estão vivos no seu corpo e não querem desaparecer. Mas às vezes a hora deles chegou e novas experiências precisam nascer. Por isso, é preciso abrir mão de algumas coisas durante a jornada morro acima.
Faz 9 meses que eu mudei para essa casinha, que sempre está de portas abertas para quem quiser praticar. Eu tenho uma aluna chamada Roberta e ela é uma jovem linda, sensível, com um olhar potente para o mundo. Dia desses, ela disse que a minha casa realmente é um lar. Ela tem 16 anos e, sem saber, me lembrou que estou parindo algo novo, que foi gestado com um foco doce, como dizemos no cinema.
A única pergunta do meu caderno terapêutico hoje é: quais serpentes eu posso banir do meu guarda-roupa e da minha mente?
O trajeto da lágrima é misterioso. Ora cai no seio, ora cai no umbigo. Até no ouvido já foi parar.
Tem dia que não cai. É o pior trajeto.