Decantação – o que realmente acontece com o vinho
Um assunto que normalmente é tratado apenas superficialmente, a aeração do vinho guarda muitos mistérios.

Normalmente chamamos de “decantação” o ato de transferir o vinho da garrafa para um decanter (recipiente de vidro com fundo mais largo). Esta operação na realidade tem duas funções. A decantação propriamente dita, que é separar o vinho de eventuais borras, e a aeração, que é expor o vinho ao oxigênio.
A decantação propriamente dita
As borras, sedimento que se acumula no fundo da garrafa, embora sejam seguros para consumo, podem turvar o vinho, atrapalhar seus aromas, sua textura pode parecer arenosa e seu sabor pode ganhar amargores. No entanto pouco vinhos tem borras, só os tintos mais encorpados quando não filtrados ou quando atingem anos de guarda. O sedimento se forma por causa do agrupamento (polimerização) das moléculas de taninos que, por serem mais pesadas, vão para o fundo da garrafa.
A aeração e a evaporação
A aeração é o motivo mais comum pelo qual se coloca o vinho em um decanter. Na aeração acontecem dois fenômenos, a evaporação e a oxidação.
A evaporação começa imediatamente após a garrafa ser aberta. Componentes voláteis do líquido começam lentamente a se mover para sua superfície e se evaporam junto com o álcool. Este processo se dá muito lentamente se o vinho for deixado na garrafa aberta, um pouco mais rápido se colocado em uma taça e de forma acelerada em um decanter. Girar o vinho na taça ou no decanter acelera ainda mais a evaporação.
Com o contato com o ar o vinho libera álcool e outros compostos aromáticos. É comum que logo ao serem abertos, especialmente garrafas mais velhas, tenham alguns odores desagradáveis (compostos sulfurosos e redutores, aromas de fósforo aceso, ovo podre, fumaça, cebola cozida), que se dissipam logo no início da evaporação, dando lugar à aromas mais elegantes, de frutas, flores, madeira, minerais etc. À medida que o vinho respira, haverá mais aromas para cheirar, transportados pelo álcool que evapora e diminui ligeiramente ao longo do tempo. Estudos mostram que vinho perde em torno de 1% de álcool a cada duas horas em um decanter. À medida que o álcool cai diminuem as sensações tácteis de maciez e de calor/queimação.
A oxidação
A oxidação já é um passo além da evaporação, pois refere-se a reações químicas, transformação de elementos do vinho, como os taninos, através de sua interação com o oxigênio. A oxidação é mais complexa e bem mais demorada, ocorre ao longo de horas ou dias.
Na prática então, uma aeração afetará muito pouco os taninos em um vinho. Vinhos mais envelhecidos têm de fato taninos amaciados, mas isso é resultado de um lento processo de anos em garrafa e não de um par se horas no decanter.
Vinhos que foram elaborados com maior exposição ao oxigênio, como os que tiveram passagem por barricas, se tornam mais estáveis quando a garrafa é aberta e mais resistentes à oxidação.
Cuidados
É preciso ter cuidados em certos casos. Vinhos mais velhos são mais sensíveis ao oxigênio. Para estes decante para separar eventuais borras e provocar a evaporação de aromas desagradáveis e sirva logo em seguida.
Mesmo tintos mais jovens podem sofrer se esquecidos por muitas horas no decanter. À medida que o paladar destes vinhos fica mais redondo eles também podem perder alguns aromas primários. A família Sauvignon por exemplo, o Cabernet Sauvignon e o Sauvignon Blanc, possuem típicos aromas derivados de compostos Tióis, como cassis no tinto e maracujá no branco, que podem diminuir sensivelmente com a aeração prolongada.
Devo aerar/decantar brancos e espumantes?
Toda a lógica exposta acima para vinhos tintos, também vale para outros tipos de vinhos: fortificados, brancos, rosados e espumantes.
Os fortificados como o Vinho do Porto devem ser aerados/decantados conforme seu tipo. O Porto Vintage necessita de decantação, pois normalmente tem muitas borras, muito corpo e se beneficia da evaporação e da decantação propriamente dita. Os do tipo Ruby, Tawny e Colheita não precisam, pois costumam ser filtrados e engarrafados poucos anos antes do consumo. Os do tipo LBV variam, pois alguns são filtrados e outros não, neste caso constará no contra-rótulo a informação “unfiltered” ou “não filtrado”.
Os vinhos rosados quase sempre são jovens e delicados demais, dispensando qualquer tipo de aeração/decantação.
Os brancos na maioria dos casos não se beneficiam de aeração/decantação. Quase sempre são consumidos mais jovens, a quantidade de taninos é muito pequena e desenvolvem poucos aromas que precisem de evaporação, e sim muitos mais aromas frescos. As exceções são os brancos de maior estrutura e maior potencial de guarda, que quando jovens podem se beneficiar de evaporação para mostrar mais rapidamente seus aromas. Há também casos mais raros de brancos que apresentam cristais (bitartarato de potássio) e pedem a decantação propriamente dita, para separar estas borras.
Decantar espumantes pode parecer uma excentricidade, e quase sempre o é. Quando isso é feito os motivos podem ser: 1-sumir com eventuais aromas desagradáveis, como sulfuroso; 2-amaciar o impacto das borbulhas, que em espumantes jovens podem ser agressivas ao paladar, e 3-em caso de espumantes de maior estrutura e ainda jovens, acelerar a evaporação e a “abertura” de seus aromas.
Como decantar, passo a passo
Caso o vinho a ser decantado possa ter borras, e a garrafa tenha sido armazenada deitada, coloque-a de pé de véspera, para que as borras se desçam para o fundo da garrafa. Para casos em que esta antecedência não é possível, existe um acessório tradicional, cestas de vime nas quais a garrafa fica inclinada.
Antes de começar lave o decanter com muita água e deixe-o secar naturalmente, sem usar panos (que podem ter cheiros indesejados e deixar fibras no vidro). Antes da decantação avinhe o decanter com uma pequena dose do vinho que será servido. Lave o decanter com esta pequena dose e descarte-a.
Remova a cápsula do vinho por completo para que se possa ver através do gargalo. Coloque o decanter em uma mesa ao lado de uma fonte de luz que deverá ficar por trás do gargalo da garrafa (para que se possa ver através do vidro quando a parte do vinho com a borra surgir). Tradicionalmente usa-se uma vela como fonte de luz, mas hoje em dia é perfeitamente lógico e prático usar-se a lanterna do celular.
Derrame cuidadosamente o vinho da garrafa para o decanter, inclinando a garrafa devagar, sem jamais recuar neste movimento, pois isto misturaria as borras no vinho. Prossiga até quase o fim da garrafa e pare. Desta forma você terá um vinho límpido no decanter e um resto (dois dedos) na garrafa, cheio de borras. Este resto pode ser uma delícia se passado no pão ou usado para cozinhar.
Para vinhos sem borra, a operação é simplificada. Pode-se Abrir normalmente a garrafa e verter o líquido por completo para o decanter.
Quanto tempo decantar
A pergunta mais feita quando o assunto é decantação, é “quanto tempo?” No mundo do vinho a resposta como sempre é “depende”. Para a decantação propriamente dita, separar o vinho de suas eventuais borras, o efeito é imediato. A aeração é que requer tempo. Minutos ou horas para evaporação, e várias horas ou dias para que chegue à alguma oxidação.
O tempo dependerá, portanto, de quanta aeração o vinho precisa. Uma boa parte dos vinhos tintos e alguns poucos brancos se beneficiará de uma aeração curta, de 30 minutos ou menos.
Vinhos envelhecidos requerem decantação extremamente curta, o ideal é decantar e servir imediatamente, pois podem se deteriorar em poucos minutos.
Alguns tintos mais jovens e encorpados podem pedir bem mais tempo. Raramente recomendo decantações de mais de 2-3 horas, sob risco de perda de alguns aromas.
Vivenciei, contudo, casos extremos de vinhos que necessitaram de aeração extremamente longa, como um jovem Yacochuya (malbec argentino de Salta) de 2 anos de idade que ao ser aberto estava fechado à sete chaves, mais depois de 3 dias da garrafa aberta já à metade, se mostrou exuberante. Ou de uma garrafa de 6 litros de Château Mouton Rothschild safra 2000 que aberta em 2019, só começou a se abrir lentamente depois de 8 horas no decanter, demonstrando precisaria de ainda muito mais tempo no decanter.
O que é dupla-decantação?
A dupla-decantação é a operação de decantar um vinho e depois vertê-lo de volta para a sua garrafa original.
Realiza-se a operação normal de decantação, separando eventuais borras. Pode-se deixar ou não o vinho no decanter por algum tempo antes de devolvê-lo a sua garrafa original. Caso haja borras a garrafa original deve ser lavada, descartando as borras, antes de colocar o vinho de volta.
Este procedimento pode ser para vinhos que não requerem exposição prolongada ao oxigênio, como vinhos antigos que não podem ficar muito tempo no decanter, mas que não serão servidos imediatamente.
A dupla decantação também pode ser muito útil quando se tem muitas garrafas a decantar e poucos ou somente um decanter. Já tive a oportunidade de coordenar um almoço com uns 20 vinhos a decantar em um restaurante que só tinha um único decanter.
Além da química
Tudo o que vimos acima é química, mas há outro fator que se sobrepõe a este, que é o psicológico. O ritual da decantação as vezes serve mais para decantar o degustador do que para decantar o vinho. E expectativa melhora a experiência. Ao tratar o vinho com respeito, estamos indiretamente tratando com respeito quem vai degustá-lo.