O mangá, antiga arte japonesa de histórias em quadrinhos, que remonta ao século VIII, quem diria, agora fala de vinho.
Oishinbo é o nome de uma coleção de livros de mangá que acabo de “descobrir”. O título é uma contração das palavras japonesas “oishii” (delicioso) e “kuishinbo” (gourmand). A série conta as aventuras do jornalista de gastronomia Shirō Yamaoka e sua parceira Yūko Kurita. Eles são escolhidos para criar o “menu definitivo”, a ser lançado como parte das comemorações dos 100 anos do Tozai News, jornal para o qual trabalham. As pesquisas e investigações dos repórteres para a criação desta refeição modelo, que tem como objetivo mostrar o pináculo da cozinha japonesa, nos levam a um delicioso passeio por cada detalhe ou ingrediente do menu, em uma abordagem que une ficção à didática e ao bom humor.
Esta coleção, que foi lançada em 1983 e já conta com 14 exemplares, é um tremendo Best Seller, de mais de 100 milhões de exemplares, e já virou até série de TV. Para a alegria dos que (como eu) não lêem em japonês, desde 2009 está disponível uma tradução em inglês. A versão americana, que traz o subtítulo “a la carte”, foi resumida e reorganizada com um tema por exemplar, como “vegetais”, “sushi e sashimi”, “noodles” e “saquê” (o que acabo de ler).
Em suas 270 fluidas páginas de quadrinhos (que se lêem da direita para a esquerda), o “Oishinbo, a la carte – Sake” – fala quase tanto de saquê quanto de vinho. A linha mestra da narrativa é uma grande aula histórica, técnica e cultural sobre saquê, usando o vinho como contraponto. Fica evidente que há muita desinformação e preconceito a respeito da milenar bebida japonesa, mais ou menos como ocorreu com a cachaça durante muito tempo no Brasil. O consumo do saquê declina no Japão, pois para os “leigos” esta é uma bebida de segunda categoria. O saquê é subestimado principalmente por causa do “sanzoshu”, uma mistura de má qualidade de saquê, álcool e açúcar, produzida em quantidades industriais. O que quase todos degustamos achando que é o puro saquê é na realidade sanzoshu. Enquanto isso pequenos produtores fazem o verdadeiro saquê, que pode (segundo o livro) atingir o píncaro da qualidade, em estilos tão variados quanto o vinho, com rótulos que alcançam o mesmo status de raridade.
A história se desenrola com constantes comparações entre saquê e vinho, sempre reverenciando o fermentado de Baco. São citados caldos clássicos como Château Lafite, Meursault, Montrachet, Corton Charlemagne, Beaulolais Nouveau (e todos os Crus de Beaujolais), Dom Pérignon e Krug. Em um dos muitos momentos didáticos do livro (que vem com um glossário) há, por exemplo, uma aula sobre método champenoise, dada por um bartender ao protagonista. Ao mesmo tempo em que o livro venera o vinho, mostra que o saquê também tem sua nobreza e que pode superá-lo em casamentos com a culinária japonesa. Alguns dos melhores momentos do livro são passagens em que harmonizações são testadas e analisadas, enfatizando que o saquê é , assim como o vinho, uma bebida para acompanhar as refeições.
Nas entrelinhas encontra-se um quadro da moderna cultura japonesa. O alerta é dado contra o processo de ocidentalização dos costumes e suas conseqüências nocivas à maneira de se produzir e apreciar o saquê. Vale a pena uma olhada na coleção, sobretudo pelo formato e abordagem pouco comuns ao universo das bebidas.
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Marcelo Copello (mcopello@bacomultimidia.com.br)
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