Salve, salve! Como posso me apresentar? William Reis, 34 anos, morador do Andaraí e apaixonado pelo Rio? Acho que a melhor maneira é dizendo da onde eu vim e o que venho comunicar a vocês da Veja Rio. Costumo dizer que sou fruto daquele povo que veio do nordeste e outras regiões do Brasil pra tentar algo melhor no Rio de Janeiro. Minha mãe migrou de Natal aos 16 anos pra ser babá no Andaraí, e meu pai veio bem criança do Espírito Santo pra morar no Complexo do Alemão. Ou seja, sou aquela pessoa que teve experiência tanto dentro da favela como fora da favela. Vivi na casa onde minha mãe trabalhava, na qual conheci meus três irmãos de criação, com quem moro hoje. Mas antes morei por mais de 10 anos no Complexo do Alemão com minha vó, que foi muito importante na minha formação como homem, além de me inserir na minha religião, que é o candomblé. Viver na favela não é fácil, mas eu tirei muita coisa legal de lá. Não vou dizer que passei fome, pois seria mentira.
Eu fui um dos poucos que tive uma família estruturada e isso faz todo o diferencial pra você não ir pelo caminho errado. Na favela pude aprender alguns princípios básicos do que hoje carrego comigo, que são: lealdade, amizade e respeito ao próximo. Como sempre digo, se eu não tivesse morado no Complexo do Alemão esse período, não ia desenvolver minhas maiores qualidades como pessoa e visto de perto o que falta muito pra gente enquanto sociedade, que é a coletividade. Só lá vi pessoas que não tinham quase nada, mas ainda assim ofereciam aos seus vizinhos o pouco de que dispunham. Perdi alguns amigos, fruto da violência, é verdade. Afinal, ainda somos um país que extermina a sua juventude com uma política de segurança ultrapassada e fadada ao fracasso. Costumo dizer que segurança pública deve ser baseada em políticas de prevenção à violência.
Também aprendi, fora do Complexo, a ser mais tolerante, me conectar com outras realidades e fazer o que eu chamo de intercâmbio cultural. Hoje consigo transitar em qualquer lugar da cidade do Rio sabendo chegar e sair. Eu poderia dizer outras coisas sobre minha infância dentro da favela e a quantidade de racismo que vivi, mas vou deixar isso mais pra frente. Quero afirmar aqui o quanto um homem negro e oriundo de favela pode contribuir pra Veja Rio em sua coluna, mas antes não posso deixar de falar o que eu faço. Me graduei em Educação Física, so que depois de formado não atuei na área, pois logo fui convidado pra atuar num projeto social que mudou minha vida. Hoje sou coordenador executivo do AfroReggae, do qual faço parte há 11 anos, lugar onde foi construída minha consciência social.
Aliás, a favela em que cresci tem total conexão com o AfroReggae. Quando lembro da minha infância, costumo dizer que duas coisas me marcaram nesse período. Uma imagem de quando tinha apenas 7 anos, quando vi uma cabeça decapitada ao ir pra escola, e aquilo me chocou muito. E o dia que o AfroReggae fez um show num lixão dentro da favela, com Gabriel pensador e Cidade negra; o evento se chamava “mãe desarme seu filho”, ocasião na qual traficantes entregaram armas pro AfroReggae quebrar no palco. Vocês tem noção dessa cena? Isso sem falar que pela primeira vez pude ver jovens negros e de favela tendo algum protagonismo, na banda AfroReggae.
O AfroReggae é um projeto social que acabou de completar 27 anos, tem como uma de suas principais missões afastar jovens da influência do tráfico, além de criar uma via de mão dupla na nossa cidade, que ainda hoje é tão segregada. Através dessa instituição pude conhecer 7 países, coordenar núcleos e atividades culturais em 10 favelas do Rio, ter mais empatia, amor ao próximo e respeito. Além disso, posso dizer que tive e tenho um grande mentor, que é o José Júnior. Ele me escolheu pra ser seu substituto na ONG, tendo sido decisivo na minha transformação num cara totalmente ligado em questões sociais, me passando os princípios que fizeram ele chegar onde chegou. Se tem um cara que tenho como referência na área social é ele. Mas pasmem, conheci o Júnior fora da favela, numa academia em que eu estagiei na Gávea.
Sou aquele cara que acredita numa via de mão dupla na cidade do Rio, onde muitas vezes falta mesmo a conexão pra que isso aconteça; conexão que eu criei, notadamente, através dos meus amigos que moram na zona sul do Rio. Por causa deles pude deixar de ter preconceito com quem mora nessa área da cidade. Eles dizem que eu mudei a vida deles e os tirei da bolha em que viviam, mas sempre afirmo que eles também mudaram minha vida. A mudança foi tanta que acredito muito hoje que as pessoas realmente possam ter empatia por outras realidades, independentemente de suas condições sociais.
Atualmente minha missão principal é reposicionar a ONG e criar novas estratégias sociais pra ajudar na mudança de realidade das pessoas que vivem na favela. Projetos sociais como os do AfroReggae e tantas outras ONGs são de extrema importância pra nossa cidade e pra construção de um país melhor. Liderar a ONG é algo extremamente desafiador, mas onde cresci se aprende que o medo e a insegurança nunca podem estar com você, pois você pode ser engolido.
O que posso fazer pra contribuir com a minha coluna? Quando recebi o convite a primeira coisa que pedi foi que pudesse falar sobre vários temas e não só sobre a questão racial. Não porque eu ache que essa narrativa não deva ser feita a todo tempo – afinal, somos a maioria no Brasil, com os maiores índices de desigualdade -, mas sim pra mostrar que nós negros também podemos falar sobre outros assuntos. Quem me ensinou isso foi minha amiga de São Paulo Adriana Barbosa, fundadora da Feira Preta, certa vez na Colômbia, quando participávamos de um projeto com pessoas do mundo inteiro em Cartagena.
Adriana me disse que queria que nós fôssemos chamados pra falar sobre outras pautas que não somente a questão racial, e me usou como exemplo: “você anda super bem vestido e atualizado na moda. Por que não te chamam pra falar de moda e estilo?”. Confesso que a partir dali eu comecei a ler e falar mais sobre outros temas. O que posso dizer é que nesse espaço discutiremos sobre cultura, juventude, comportamento, diversas temáticas sociais – e sobre a questão racial também -, além de dar visibilidade a pessoas que vêm se destacando no Rio e no Brasil, pois quero sempre trazer uma opinião diferente e nunca um ponto de vista isolado, uma verdade absoluta. É mais um desafio na minha jornada, mas, pra quem conhece os dois lados da moeda na cidade do Rio de Janeiro, ter essa coluna não será apenas retratar o orgulho de ser carioca. É preciso debater como podemos contribuir pra nossa cidade e o que vem acontecendo do outro lado do túnel.
William Reis atua há 11 anos no Grupo Cultural AfroReggae, onde é o atual coordenador executivo.