Em tempos de Coronavírus, minha preocupação são as favelas cariocas, que sofrem historicamente com doenças devido ao descaso de seguidos governos, sejam eles A ou Z. Levar informação às nossas favelas é necessário, mas dar aos seus moradores ferramentas para combater o Coronavírus e conscientizar os empregadores que usam a mão de obra que vem das favelas também é de extrema importância.
Em 1958, Carolina de Jesus, da favela do Canindé, escreveu em seu livro “Quarto de Despejo”: “Às oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade, tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludos, almofadas de cetim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”.
Após algumas décadas, esse relato se faz vivo em várias favelas do Rio. Conversei com dois médicos que conhecem essa realidade e apontam diversos problemas que podem agravar os riscos de quem mora nas favelas com a chegada do vírus.
Impedir que o Coronavírus faça um estrago sem precedentes nas 763 favelas do Rio talvez seja o maior desafio do governo. A lista de doenças infecciosas nessas comunidades é enorme. Em 2017, a maioria das vítimas acometidas de tuberculose residiam em favelas. Manguinhos e Rocinha sofreram muito com a doença. Diarreia e pneumonia também acometem essas populações.
O alto índice de doenças sexualmente transmissíveis entre jovens da favela é uma realidade. O consumo de alimentos pré-cozidos de baixa qualidade e a ausência de necessários nutrientes aumentam a desnutrição e a subnutrição. A dengue transmitida pelo mosquito e a leptospirose por ratos também afetam essas populações, além de doenças que comprometem a saúde mental, do alto índice de acidentes e violência. Tudo isso nos mostra o quanto a favela está exposta ao Coronav��rus.
Conversei com o médico Fred Nicácio, nascido em Campo dos Goytacazes e formado pela UNIG, que trabalha no SUS desde 2009. Ele se preocupa com o vírus desde que ouviu as primeiras notícias de sua presença no Brasil. “A gente que está dentro do SUS sabe das vulnerabilidades e de como a população pobre fica fragilizada.’’ O SUS será o destino dessa população, que sofre com a superlotação de unidades de atendimento e hospitais e com a falta de equipamentos adequados para o atendimento. ‘’Eu costumo dizer que enquanto esse vírus estiver na dita classe A, que pode fazer os exames para diagnóstico da Covid-19 e dispõe de atendimento de qualidade, que tem acesso a hospitais e pode entrar em quarentena logo que os sintomas aparecem, ainda não temos um problema. O problema de verdade ocorre quando o vírus chega nas favelas, onde não há suporte algum à saúde,’’ diz o médico.
Essa é a realidade da população das favelas do Rio, que vive em espaços pequenos, acumulando-se em aglomerações que facilitam a contaminação. Além disso, o médico ressalta que a grande maioria de moradores das favelas é de mulheres que trabalham como domésticas. “A patroa chega da Europa, com suspeita ou diagnóstico de Covid-19, e contamina a empregada, que mora no subúrbio, vai ser infectada e morrer da doença. Essa é a realidade do SUS,’’ diz Fred.
O médico ainda manda um recado para moradores de favela. ‘’O que eu posso falar para o pessoal da favela é que se cuidem porque sei que eles não podem entrar em quarentena. Muitos patrões ainda não estão liberando seus empregados. Poucos são conscientes. Evitem lugares com muita gente. Sabemos o quanto a religião é importante para muitos de vocês, mas esse momento é de evitar aglomerações.”
A médica Juliana Ribeiro Peres da Silva, formada em 2017, que trabalha na área de Clinica Médica, faz alguns alertas e chama atenção para a importância de conscientizar quem usa a mão de obra que vive nas favelas do Rio. ‘’Temos que orientar as pessoas a lavar as mãos e não sair de casa, em especial os grupos de risco. Se tivermos o mesmo número de casos que ocorreram na Itália, não teremos leitos para segurar essa demanda. Mas o mais importante é que os patrões se conscientizem, fechem seus estabelecimentos comerciais, entendam que não dá pra obrigar as pessoas a trabalhar usando o transporte público lotado. Sabemos que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco.”
Mesmo que a população que vive nas favelas do Rio siga à risca todas orientações, recomendações e dicas das autoridades e dos infectologistas, os riscos são imensos. Muitas comunidades sofrem com a falta d’água, e quando tem água não tem saneamento básico e a água torna-se imprópria para o uso doméstico, causando outras doenças.
O imprescindível álcool em gel para muitos é um luxo. Muitas dessas pessoas não tem recursos para comprar sabão. Os governos municipal, estadual e federal precisam considerar esses desafios ao planejar suas ações: fornecer materiais de higiene e suporte à alimentação para essa população, que em grande parte vive do emprego informal e atividades pontuais.
É tempo de união do Estado. O momento é de quem tem o privilégio de ter em casa uma empregada doméstica colocar em prática a retórica ‘’ela é quase da família’’ e cuidar para que essas mulheres que cuidam de seus filhos não tenham sua saúde afetada. O momento é de todo empregador ter a sensibilidade de dialogar com seus empregados e resolver da melhor forma as questões burocráticas. O momento é de lembrar que muitas dessas pessoas vivem em aglomerações onde o vírus pode se propagar rapidamente e não podem se dar ao luxo de ficar em quarentena porque em sua casa só há um único quarto. O momento é de templos religiosos e líderes religiosos também terem responsabilidade.
O momento é de entender que o Rio é uma cidade que vai além de suas áreas nobres. Não podemos colocar nos ombros dos moradores da favela o peso da culpa de uma contaminação em massa pelo Coronavírus. Como dizia Martin Luther King, ‘’A única coisa positiva que a sociedade mais ampla vê numa favela é o fato dela ser uma fonte de mão de obra barata em tempos de prosperidade econômica. Fora isso seus habitantes são responsabilizados por sua própria condição de vítimas.’’
William Reis atua há 11 anos no Grupo Cultural AfroReggae, onde é o atual coordenador executivo.