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William Reis

Por William Reis, coordenador-executivo do AfroReggae Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
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Vila Cruzeiro: um legado da cultura negra no Rio

No final do século XIX nascia o Quilombo da Penha que influencia até hoje o cotidiano de uma das favelas mais negras do Rio - Vila Cruzeiro

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Atualizado em 9 jul 2020, 22h31 - Publicado em 9 jul 2020, 16h23
Igreja da Penha o início de um Quilombo que mais tarde se tornaria a Vila Cruzeiro (Rio antigo/Arquivo pessoal)
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Vila Cruzeiro fica situada no conjunto de favelas do complexo da Penha e é conhecida pela violência ou por ser refúgio do ex-jogador de futebol Adriano Imperador, que ainda hoje mantém uma relação com a comunidade. Pouco se fala da grande riqueza histórica desse lugar. No final do século XIX, um padre abolicionista e republicano cedeu o espaço a escravizados libertos que se organizaram em um quilombo. A resistência desses negros está presente até hoje nas tradições da favela.

O Quilombo da Penha surgiu após a abolição da escravidão, nas redondezas da Igreja Nossa Senhora da Penha. Isso marca a diferença entre a Vila Cruzeiro e a maioria das favelas do Rio, que surgiram nas décadas de 60 e 70 em consequência do crescimento populacional.

As terras dos quilombos sempre tiveram como características a fertilidade, lagos artificiais e nascentes de água que brotavam das margens da pedreira, peixes de água doce, animais silvestres, ingredientes primordiais para atrair os quilombolas. Ainda hoje, na casa da minha mãe, temos uma mina d’água natural que foi e é usada para nosso consumo. Com o fim do quilombo, vieram o crescimento populacional e os sucessivos aterros e as riquezas naturais de Vila Cruzeiro foram desaparecendo.

Transformada em favela, Vila Cruzeiro manteve viva a herança do quilombo no samba, no funk, na capoeira, na estética negra reproduzida nos salões de beleza, no futebol e na militância. Durante a pesquisa para esse artigo, busquei as figuras emblemáticas desse lugar, que se transformou em uma das favelas mais conhecidas do Rio de Janeiro. A violência, que fez a fama da Vila Cruzeiro, está presente nos nomes de suas vielas. O chamado Bairro 13 é uma referência ao filme francês Banlieue 13 (em português, 13º Distrito), que conta a história de um bairro totalmente abandonado pelo governo no subúrbio de Paris, com escolas fechadas, tráfico de drogas e corrupção policial, uma realidade em nada diferente das favelas cariocas.

Na busca por personagens que mantêm a resistência e preservam a cultura desse quilombo moderno, que hoje é uma das favelas mais negras do Rio de Janeiro, conversei com Marcelo Dias do Movimento Negro Unificado. Marcelo nasceu e foi criado na Vila Cruzeiro. Seu pai capixaba e sua mãe mineira saíram de seus estados para viverem no Rio de janeiro. Marcelo conta que a Vila Cruzeiro foi um dos destinos escolhidos pelos negros após a abolição, que no Brasil foi marcada pela ausência de políticas públicas de inserção dos negros na sociedade.

‘’A Vila Cruzeiro, que foi ocupando espaço sem abrir mão da nossa cultura, é consequência do abandono do nosso povo pelo estado brasileiro. Eu cresci fazendo parte disso. Me sinto orgulhoso, pois de alguma forma ajudei em alguns avanços,’’ afirma Marcelo Dias, eleito duas vezes deputado estadual pelo Rio de janeiro.

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Marcelo Dias
Marcelo Dias do MNU (Movimento Negro Unificado) lembra da infância e do legado dos negros na Vila Cruzeiro (Tomaz Silva/Agência Brasil/Reprodução)

Marcelo contou ainda como a cultura negra se manteve e continua viva no cotidiano dos moradores da Vila Cruzeiro. Ele falou sobre a sua infância e sobre os banhos nas piscinas naturais da favela, que se tornaram conhecidas em reportagens de vários jornais. “Na pedreira Cantareira eram várias piscinas naturais; tinha muito peixe. A empresa que está lá também é responsável pela devastação das riquezas naturais daquele lugar.” A empresa a qual ele se refere é a Lafarge, que atua no setor de extração de brita, matéria-prima para produção de concreto.

Piscina natural
Piscina Natural na Vila Cruzeiro que é uma das riquezas naturais presentes na favela desde o seculo XIX (Ascom Inea/Divulgação)

Uma outra manifestação cultural importante, resultado da influência dos africanos trazidos para o Brasil para serem escravizados e tão marginalizada em nosso país, é a capoeira. Os mestres Dentinho e Touro, dois irmãos que vieram do Espírito Santo, moradores da Rua 3, conheceram a capoeira na Penha. E foram um dos primeiros a levarem a capoeira para o exterior. Mestre Dentinho criou um estilo próprio, chamado Angola da Penha, um estilo destemido, impossível de copiar, que não deixa o adversário prever seus movimentos. Ele faleceu em 2017. Uma de suas frases mais marcantes: ‘’Não fiquei rico, mas enriqueci muita gente com a minha arte.’’ Dedicou sua vida à capoeira e foi responsável pela formação de muitos capoeiristas negros. Hoje, a capoeira não é mais criminalizada nem perseguida e virou fonte de riqueza para muitos que não são negros nem são oriundos desses lugares de resistência.

Dentinho e Touro
Mestre Dentinho sendo observado ao fundo pelo irmão e Mestre Touro, a dupla é considerada como lendas da capoeira no Rio (Página Facebook Vila Cruzeiro/Reprodução)

Mestre Touro, irmão de Mestre Dentinho, atua até hoje dando aulas para crianças na Vila Cruzeiro. Devido às dificuldades de sobreviver exclusivamente da capoeira, também foi ator. O maior legado desses dois irmãos foi manter viva a verdadeira história da capoeira, preservando a memória de fatos e datas que marcaram a sobrevivência do povo negro no Brasil. Não é à toa que Mestre Touro é considerado uma lenda viva da capoeira carioca e segue resistindo dentro da Vila Cruzeiro. 

A música negra também é uma das heranças do povo negro na Vila Cruzeiro.  O famoso baile da Gaiola fez a fama do DJ Renan da Penha em todo Brasil. Infelizmente, como acontece historicamente com os funkeiros das favelas cariocas, o preço pago pela fama foi uma acusação de associação ao tráfico seguida de sua prisão. A música negra sempre foi marginalizada. O samba é uma das provas disso. Mais um dos ritmos fortes no território da Vila Cruzeiro e arredores, o samba manteve-se vivo através do Cacique de Ramos, da escola de samba Imperatriz Leopoldinense, dos filhos do Jurema ou do Rouxinol do Grotão da Penha.

baile da Gaiola
O funk sempre foi forte na Vila Cruzeiro e Renan da Penha é mais um dos vários funkeiros que são criminalizados no Brasil (site Agência de Notícias das Favelas/Reprodução)
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Marcelo Dias relata ainda que, em sua juventude, havia na Vila Cruzeiro alguns grupos que dançavam a chamada black music, que propagou mundialmente a influência dos negros norte-americanos. Marcelo fala de algo comum nas comunidades. ‘’Na década de 70, havia em nosso grupo alguns brancos que iam a esses bailes funk. Segregar nunca foi parte da nossa cultura, ainda mais na favela.’’ O grupo de Marcelo Dias chamava-se Power of the Black People.

Não se pode falar da Vila Cruzeiro sem citar um personagem que fez sucesso dentro dos campos de futebol no mundo todo, e gerou muita polêmica fora deles. Adriano Leite Ribeiro é a figura mais conhecida oriunda desse território. Sua história se parece com a de milhares de jovens negros favelados que sonham com um lugar ao sol. Adriano nunca abandonou suas origens e divulgou o nome da favela internacionalmente. Mas segundo Marcelo Dias, o Campo do Ordem, onde o Imperador deu seus primeiros chutes, foi palco de craques iguais ou melhores do que Adriano, que esbarraram na falta de oportunidades e na violência. ‘’Os irmãos gêmeos José Carlos e Antônio Carlos, Tuniquinho, Beto, Dedé, Tchê, Marrom, Garrafa, todos eles negros e da Vila Cruzeiro, foram tão craques quanto Adriano Imperador. Jony, que foi profissional no Paraná e morreu de choque térmico após mergulhar em uma piscina, foi outro craque. Esse campo tem história,’’ afirma Marcelo Dias

 

Campo do Ordem
Campo do Ordem onde Adriano Imperador começou mas também foi palco de outros craques que ficaram no anonimato (Página Facebook Vila Cruzeiro/Reprodução)

Outra manifestação da cultura negra, presente no dia-a-dia da favela, acontece nos salões de beleza. Marcelo lembra que sua mãe atravessava o morro para cuidar do seu cabelo, uma prática frequente nas casas das mulheres negras da favela, anterior aos salões de beleza. ‘’Minha mãe sempre foi cliente de mulheres que atendiam em casa. Isso era muito comum na favela. As mulheres trabalhavam durante a semana e nos fins de semana procuravam as cabeleireiras que atendiam em casa. Só depois surgiram os salões de beleza.”

Marcelo Dias também conta que havia forte ativismo na Vila Cruzeiro em sua época. Ele lembra de um antigo problema da favela, a falta de luz. A Light fornecia energia para Comissão da Luz  e a comissão repassava a energia para a favela. Quando chovia, a luz acabava. E ainda havia outros problemas de fornecimento de energia na Vila Cruzeiro. ‘’Quando eu tinha 20 anos, eu trabalhava no Metrô do Rio, era secretário da Associação de Moradores da Vila Cruzeiro e fazia parte do PT. Começamos a pressionar a Light e a empresa exigiu que a gente juntasse um certo número de moradores. Eles achavam que as pessoas não iriam. Criamos um jornal chamado  COM A BOCA NO MUNDO, fizemos boca-a-boca nas casas, e no final organizamos uma assembleia de 4 mil pessoas na praça para discutir políticas públicas. Até hoje, ninguém conseguiu esse feito na favela.’’

A professora Laís Rufino leciona desde 2009 na escola pública Brandão Monteiro, que fica dentro da favela. Sua família vive na Vila Cruzeiro desde as décadas de 30 e 40. Ela, que sempre passou suas férias lá, conhece muito bem a história do quilombo que virou favela. ‘’Eu sempre quis saber a história da minha família e do local onde escolhi trabalhar. Muitos professores vão para a favela sem essa ligação que eu já possuía. Eu gosto de contar essa história para as crianças e mostrar que o lugar onde elas moram é um lugar de resistência, que foi um quilombo e que eles devem manter essa resistência. Além disso, essa história serve de contraponto à imagem pejorativa da Vila Cruzeiro retratada na mídia. Essa história diz muito do que nós realmente somos,’’ conta a professora, que hoje trabalha na coordenação pedagógica da escola.

 

Coluna William Reis
Lais Vivian Oliveira Rufino é professora na Vila Cruzeiro onde mantém a história viva entre os alunos (Lais Rufino/Reprodução)

A história da Vila Cruzeiro é um retrato do que aconteceu no Brasil após a abolição: o país abandonou um povo que foi escravizado por três séculos e meio e não recebeu nenhum tipo de indenização nem foi contemplado com políticas públicas de inserção na sociedade. A transformação do quilombo em uma favela marcada pelo estereótipo de lugar violento deve-se ao abandono e ao descaso.  Hoje, os moradores da favela são responsabilizados pela desigualdade em que vivem. No Brasil, é comum tentarem apagar as histórias de resistência. Apagam o passado dessas favelas e expõem apenas a violência numa tentativa de justificar a guerra às drogas. Mas ninguém espera que surjam pessoas como Marcelo Dias, William Reis e Laís Rufino, que pesquisam o passado para contar a verdadeira história da favela. É fundamental resgatar a cultura e a influência negra nesses lugares e reafirmar sua força e importância na formação dos que lá nasceram ou vivem. A favela tem princípios que são raros de encontrar fora dela. Viva Vila Cruzeiro e toda sua história de resistência!

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