Boa noite, Cinderela
Assim como a história do sapo, que não sentiu a água da panela esquentar, não notamos quanto comer fora de casa mudou nos últimos 25 anos
Então, uma Cinderela espeta o dedo num fuso, em 1996, cai num sono profundo e acorda na porta de um restaurante no Rio, em 2021.
— Olá! Sou Fernando, seu garçom. Aqui, o pão de fermentação natural acompanha a prejereba de Fulano que faz um trabalho lindo de pesca sustentável. De entrada, um palmito de manejo agroecológico com farinha de milho crioulo e orgânico de Silva Jardim. Já que a segunda é sem carne, temos o cardápio vegano acompanhado de um copo de vinho natural, mas amanhã tem filé da Fazenda Tal, que só trabalha com abate sem dor. A sobremesa, aliás, é feita com bananas de uma comunidade quilombola de Paraty.
— Que língua é essa, meu Deus?! Vamos começar do princípio: o que aconteceu com o “fumante ou não fumante”? E por que diabos você está de máscara?
Assim como a história do sapo, que não sentiu a água da panela esquentar, não notamos quanto comer fora de casa mudou nos últimos 25 anos.
O primeiro grande impacto no gosto veio da abertura das importações, ao longo dos anos 90. Como o rompimento de um dique, arrastou nossa paixão por tudo aquilo que vinha de fora, até a metade dos anos 2000. A reboque, melhorou a indústria nacional.
Nos copos, uma enxurrada de rótulos sem fim, fossem cervejas ou vinhos, que, aliás, passavam a ser servidos a copo, graças à chegada das winekeepers que brotavam por aqui. Nas mesas, o vinagre passou de comum a balsâmico, o salmão desbancou os populares cherne e robalo, e o pobre do arroz comum foi atropelado pelo arbóreo.
Lembram do tempo em que não havia estação, safra ou entressafra e todo dia era dia de carpaccio, bruschetta, risoto, brie com damasco e crème brûlée? Pois é, o foco ainda estava na criação e não no ingrediente.
“Assim como a história do sapo, que não sentiu a água da panela esquentar, não notamos quanto comer fora de casa mudou nos últimos 25 anos”
De repente, países e cidades adotaram um comportamento global, por vários motivos. “Aguenta na cadeira, Cinderela, que a coisa complica!” Os prêmios internacionais passaram a influenciar a cozinha mundial. Em 2002, quando o El Bulli foi considerado “o melhor do mundo” pela revista inglesa The Restaurant, o Rio teve a fase das gelatinas, espumas e esferificações, até em drinques, herança de Ferran Adrià. E dali até hoje, o que acontece em Estocolmo pode mudar o jeito de apresentar um prato no Brasil.
Os reality shows em restaurantes, que invadiram a TV na metade dos anos 2000, mudaram o status do chef e emprestaram a ele o mesmo glamour dos personagens dos filmes de Wall Street nos anos 90. O mundo, agora, queria trabalhar na cozinha.
As redes sociais provocaram uma mudança profunda, em todos os sentidos. A crítica passou de especializada a pulverizada; a eficiência das equipes deu lugar à performance e garçons viraram contadores de histórias com todo o seu atendimento fotografado, filmado e verificado; os pratos viraram esculturas e os ambientes de bares e restaurantes viraram palcos, com iluminação e ângulos dramáticos garantindo a boa foto.
Lá para 2006, a pegada de carbono, que já era assunto no mundo todo, virou questão também para a gastronomia. Foi assim que pimba!, redescobrimos o Brasil. Agora era importante que a comida viesse de perto e ali, naquele momento, a descrição nos cardápios se estendeu. Não bastava ser pato, era pato de Friburgo. O ingrediente passava de genérico a algo mais importante e tinha nome e sobrenome. Então, o olhar do cliente saiu da cozinha e começou a passear pela cadeia. Não bastava a história da casa e do chef, era preciso saber de onde vinha o alimento, de qual fazenda, qual era sua composição, se tinha agrotóxicos, alergênicos, quem era o produtor, sua história e manejo, fosse de legumes ou animais. Era a ponta do iceberg.
Juntando na mesma panela o interesse pela comida com a necessidade de contar histórias, personagens brotaram em todos os capítulos desse filme: o influencer que filma o processo, o chef que mostra o preparo, o garçom que conta a história, a vaca que dá o leite, o sujeito que faz o queijo. Agora o foco em pessoas e bichos fazia tudo virar artesanal e levava a outras perguntas: tem mais homem ou mulher na equipe? A herança cultural está sendo respeitada? O produtor enxerga as minorias? O abate é sem dor?
Cinderela, já troncha na cadeira e preocupada se o sapatinho arranhava o piso de madeira certificada, não estava preparada para o capítulo Covid, mas aguentou com lágrimas nos olhos.
— Então, dona Cinderela, foi mais ou menos assim.
— Faz o seguinte, Fernando. Me vê um café bourbon amarelo da Mantiqueira de torra média clara, a conta e um fuso envenenado, por favor?
— Mas por quê?
— Houve muita mudança positiva e interesse nas coisas certas, mas pede pro príncipe me acordar quando a fase do discurso passar?
* Cristiana Beltrão é restauratrice do grupo Bazzar e colunista de VEJA RIO