A frase está estampada em letras garrafais na parede do Joint, o concorrido mercado de peixes de Los Angeles, que fornece a matéria-prima dos restaurantes mais estrelados da Califórnia: “Fresh is boring” (fresco é chato), justamente o avesso do mantra que enaltece o frescor dos alimentos. Não que a ideia não siga em voga, mas, em paralelo a ela, corre uma outra — a de que certos itens, como pescados, melhoram com o tempo, tal qual os bons vinhos. A onda da vez, rica em sabor, é deixar anchovas, dourados e outros seres do mar repousar em câmaras com temperatura, umidade e ventilação controladas. Lá, a matéria-prima é submetida ao dry aged, a maturação a seco, já tão conhecida no universo das carnes bovinas.
Ancorada em métodos de conservação rudimentares, que datam de muitos séculos atrás em lugares como os países nórdicos e o Japão, a técnica está à prova nos balcões de alguns dos melhores japoneses da cidade, a exemplo do San e do Haru, assim como no criativo trabalho do chef Gerônimo Athuel, do Ocyá, que abriu casa nova no Leblon com sua câmara de maturação como carro-chefe da decoração — à vista dos comensais e de quem passa na calçada. Essa turma movimenta um número crescente de premiadas mesas, explorando novas possibilidades de sabores e texturas nas criações do mar.
Às vezes, para agradar a diferentes paladares, o restaurante serve duas versões — uma ao natural, a outra maturada — do mesmo prato. É desse jeito com o nobre atum bluefin, feito em forma de sushi no restaurante San, no Leblon, onde o exemplar à moda dry aged matura por catorze dias. Praticamente derrete na boca, com forte presença de umami (o chamado “quinto gosto”, que eleva os demais).
“Além de mais sabor, ainda alcançamos uma textura diferenciada, já que as fibras musculares se degradam com a atuação das enzimas que atuam no processo”, explica André Kawai, fundador da Nagoya Sushi School, no Japão, e chef do grupo San, que compreende o Omakase, balcão para oito pessoas, e o restaurante, onde 30% de todos os pescados são submetidos à maturação. “O processo é todo controlado e permite manter frescor e suculência”, acrescenta o especialista na técnica William Albuquerque, que dá consultoria para mais de vinte restaurantes, incluindo o próprio San.
Nas câmaras de maturação do Ocyá, na Barra e no Leblon, não há sinal daquele desagradável cheiro de peixe entre as várias espécies. Quando trabalhado da forma correta desde a pesca, como ressalta Gerônimo Athuel, com retirada do sangue e limpeza meticulosa, o frescor pode até aumentar. “E a desidratação da pele, exposta à brasa, ainda produz uma crocância incrível”, lembra.
Mantendo a temperatura entre 1 e 3 graus negativos e a umidade entre 70% e 85%, ele consegue guardar, por mais de quarenta dias, os peixes maiores, como o olho-de-boi, e mais gordurosos. Os menores, como a anchova, ficam de cinco a dez dias sob vigilância controlada. O processo é acompanhado por técnicos da Universidade Federal Fluminense, caso do professor e veterinário André Medeiros. “Há fatores como a queda do pH e o acúmulo de ácido láctico, seguido de reações enzimáticas, que degradam as fibras musculares, amaciam a carne e formam aromas”, ensina. Com a perda do líquido, o sabor fica mais concentrado, e o prazo de validade é esticado.
Perseguido pelos chefs, o umami vem do ácido glutâmico, uma das substâncias formadas durante o dry aged, que atinge resultados desafiadores nas carnes vermelhas. As peças escurecem com o tempo sob a ação de diferentes colônias de microrganismos. “Em peças com mais de noventa dias, as bactérias ácido-lácticas oferecem o mesmo sabor do queijo azul”, compara Eduardo Rodrigues, consultor do empresário e restaurateur Marcelo Malta, do Malta Beef Club e do Sabor das Águas.
Enquanto pontos como a churrascaria Fogo de Chão e algumas unidades do supermercado Zona Sul mantêm câmaras de maturação com t-bones e outros cortes robustos, no restaurante Tiara o chef Rafa Gomes realiza a técnica com patos. “Com catorze dias, a carne amacia, intensificando o sabor, e a pele fica no ponto para a crocância”, diz Rafa, que pilotava os pratos da ala dry aged no Eleven Madison Park, o três-estrelas Michelin de Nova York.
Hoje decodificadas pela ciência e pela microbiologia, a maturação, a desidratação, a cura e outras estratégias de preservação de alimentos nasceram como métodos confiáveis em tempos nada tecnológicos. Na Idade Média, os ventos gelados do mar nas cinzentas paisagens nórdicas maturavam naturalmente os peixes pendurados no interior ou em grades de madeira ao ar livre, em condições semelhantes às criadas nas câmaras modernas, onde a ventilação é fundamental.
No Japão, há registros de salmões, trutas e robalos secos entregues aos imperadores como iguarias no século VIII, assim como evidências, que voltam três milênios antes de Cristo, de pescados secos ao sol nas margens do Rio Nilo. Um leque variado de sabores surgidos milênios antes do advento da geladeira, agora reavivados com conhecimento de causa nas boas mesas cariocas.
FRESCO É CHATO
Como se dá o processo de maturação a seco nos pescados
Os pescados são pendurados em câmaras refrigeradas, geralmente entre 1 e 3 graus negativos, com umidade controlada de 70% a 85%, e ventilação constante
Reações enzimáticas são desencadeadas degradando as fibras musculares, tornando a carne mais macia
Acontece também a redução de líquidos, que deixa o sabor mais concentrado, sem que os peixes percam o frescor e a suculência
A técnica do dry aged forma ainda substâncias como o ácido glutâmico, responsável pelo umami, conhecido como o quinto gosto
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