Cozinheira autodidata, Roberta Sudbrack traçou uma carreira formidável diante dos fogões. Antes disso, porém, na primeira refeição que precisou preparar para si mesma, viu-se impotente diante de uma berinjela e uma abobrinha. “Precisava comer e não sabia o que fazer com aquilo. Eu me senti desafiada”, recorda. Obstinada, passou a devorar livros de culinária e, em pouco tempo, descobriu uma paixão. Largou a faculdade de veterinária, trabalhou em restaurantes mundo afora e deu expediente no Palácio da Alvorada, de 1996 a 2002, onde foi a primeira (e a única) chef a comandar a cozinha da residência oficial do presidente da República. Os maiores louros ainda estavam por vir. Em 2005, a gaúcha instalou-se no Rio e abriu o Roberta Sudbrack, onde servia exclusivamente menus degustação, em uma só mesa de dezesseis lugares, algo impensável para a época.
Apesar da resistência do público, conquistou a crítica e amealhou os principais prêmios nacionais e internacionais — foi o primeiro endereço carioca a figurar na lista dos 100 melhores restaurantes do mundo e, desde 2015, exibe uma estrela no prestigiado Guia Michelin. No topo da carreira, a cozinheira surpreende ao anunciar o fechamento da casa que leva seu nome no Jardim Botânico e que completaria doze anos neste mês. O derradeiro jantar foi servido em 30 de dezembro, sem celebração nem despedida oficial. “Nem meus funcionários sabiam que seria nossa última refeição. Só eu”, revela. Sobre a decisão, maturada há alguns anos e elaborada em sessões de terapia, ela falou a VEJA RIO.
› O fim de uma era. Sei que o Roberta Sudbrack tem importância não só para a gastronomia do Rio, mas para a do Brasil. Porém seu ciclo se encerrou. Fizemos tudo de inovador e audacioso que se poderia imaginar. Foi absolutamente prazeroso e glorioso. Mas cresceu tanto que ficou maior do que eu. Ter 26 funcionários para atender quarenta pessoas? Teve seu tempo, mas não acredito mais nesse excesso.
› O conceito do Roberta Sudbrack. Fiz o restaurante dos meus sonhos. Investimos numa linguagem completamente nova, uma maneira ritualística de interagir com a comida que, para o Rio, era muito audaciosa. Você chegava com hora marcada para comer um menu que mudava todo dia, junto com desconhecidos. Foi difícil, mas conseguimos.
› Comida para poucos. Saí de um palácio para outro. Deixei o Alvorada, onde era totalmente inacessível, para abrir o Roberta Sudbrack. Ali fiz tudo em que acreditava, mas também acabei ficando inacessível, e não só pelo preço. Uma moça que esteve no restaurante me disse que tinha adorado tudo, mas que, quando estava se arrumando, morreu de medo por achar que se sentiria mal, desconfortável naquele ambiente. Imagine quanta gente não sentiu o mesmo.
› Menu degustação. Acho que saturou, perdeu a graça. Em congressos internacionais, enquanto todos os colegas vão aos melhores restaurantes, busco os mais simples. Não me peça para me arrumar para jantar. Não estou cuspindo no prato em que comi. Foi importante naquele momento, mas não quero mais.
› Processo de criação. Meu estilo é anárquico. Há sempre um fio condutor, que pode ser uma exposição ou um show. Sempre fui muito ligada às artes. Mas nunca desenhei um prato, nem fiz um esboço. O prato acontece, às vezes, na noite em que é servido. Trabalhar comigo é uma grande loucura. Tem seu lado bom, mas há outro bem difícil.
› Dinheiro. Estou famosa, é verdade, mas continuo sem dinheiro. Não consegui comprar meu apartamento, por exemplo. Meu restaurante nunca deu muito lucro. E, por incrível que pareça, esse não foi o motivo do fechamento. Chegamos a negociar aluguel, sentimos a crise, mas ele continuava se pagando.
› Prêmios. A gente sabe o que tem de fazer para entrar nas listas dos melhores. E, nessa ânsia, você começa a fazer o que esperam de você e deixa de lado aquilo em que acredita. Está aí uma coisa de que me orgulho: ter chegado aonde cheguei sem deixar de lado o que acredito. Viajei o mundo por causa de uma semente de quiabo que não passa por nenhum processo mirabolante de cocção.
› Alta gastronomia contemporânea. Acho que caímos na pasteurização. Hoje em dia, é difícil ver uma assinatura real num prato ou num cardápio. Quero fugir disso. Não tenho problema com o conteúdo, com a técnica, com pratos arrojados. Mas com a forma. Meu rompimento foi com tudo o que a alta gastronomia exige de mim.
› Cozinha tecnológica. Odeio máquinas que fazem o trabalho por nós. Quando controlamos mecanicamente o processo, tudo fica igual, perfeito. Acho a perfeição um saco. Ela causa estagnação. A maior barbaridade que ouvi na vida veio de um cozinheiro conhecido que me disse: “Eu jogo tudo no sous vide (um aparelho de cozimento a vácuo) e depois vejo o que faço”. É tão vazio…
› Guia Michelin. Para a gente, não muda nada em volume de clientes. Não tem a importância que tem na França — e, mesmo lá, ela já é bem menor. Aliás, preciso escrever uma carta ao Michelin dizendo que isso não me pertence mais. Se eu ia manter a estrela ou ganhar a segunda, não vou saber nunca.
› Programas de TV. Quase todos me chamaram para participar na primeira formação como um dos apresentadores, MasterChef, The Taste Brasil… E até hoje recebo propostas para ir como convidada. Nunca quis, porque não acredito. Eles fazem a cozinha chegar a mais pessoas, mas passam uma ideia falsa. Os cozinheiros vão para o mercado acreditando naquele glamour.
› A volta às ruas. O street food me inspirou muito. Há certa confusão nesse termo. O acarajé, o angu, é claro, são comida de rua, são nossa expressão. Mas o street food é um movimento maior, que busca a liberdade de fazer comida em qualquer lugar, de forma improvisada, mas da melhor maneira. Na Europa, está profundamente conectado ao produtor.
› Suddog. Eu não fazia ideia de que seria esse sucesso. As pessoas ficavam até quatro horas numa fila para comer meu cachorro-quente! Recebi inúmeros convites para levá-lo para o mundo todo. Mas ia massificar. Como eu poderia usar o queijo da dona Virgínia? Ou o pastrami da Patrícia? Não daria…
› E agora, Roberta? Recebi um convite de um amigo para fazer um bar com comida, em Ipanema. Lá, vou cuidar só da cozinha. Mas meu projeto pessoal é abrir um novo restaurante em breve. Nada de pompa e circunstância. Boa comida, que conte uma história, mas numa linguagem mais acessível. Ainda estou conceituando. Provavelmente se chamará Sud, e estou entre um ponto na Gávea e outro no Jardim Botânico.
› Um desejo. Minha avó é uma cozinheira de mão-cheia, mas parou de cozinhar para mim. Diz que sou muito mestra, tem medo. Quem sabe ela volta a cozinhar para mim? ß