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Quando a carne é forte

A churrascaria Fogo de Chão abre a primeira filial na cidade e desafia o domínio do Porcão com seus cortes suculentos e o apego às tradições gaúchas

Por Felipe Carneiro
Atualizado em 5 jun 2017, 14h57 - Publicado em 24 jun 2011, 15h19
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  • Com seus espetos repletos de cortes nobres e um opulento bufê de saladas e frutos do mar, a churrascaria Porcão reina absoluta entre os rodízios da cidade há quase uma década. Nesse período, viu concorrentes minguar e sua clientela crescer. Celebridades, craques de futebol, empresários, turistas e famílias inteiras lotam suas dependências, de domingo a domingo, atrás de fartura e qualidade. Pois tal hegemonia sofreu um duro golpe na última quarta (22). Naquele dia, sem alarde, abriu as portas na Praia de Botafogo a filial da rede Fogo de Chão, um império que fatura 170 milhões de dólares ao ano, com sede em São Paulo e forte presença nos Estados Unidos. Instalada em um vasto salão com terraço anexo, capazes de receber 450 pessoas à beira da Baía de Guanabara, a potência da carne não veio ao Rio de Janeiro a passeio. Depois de cinco anos de negociações e 12 milhões de reais em investimentos, o grupo inaugurou por aqui uma de suas maiores unidades. Entre as atrações, não falta uma adega com espaço para 12?000 garrafas, que já nasce como a maior da cidade.

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    Apesar do preço idêntico ao da rival carioca, 92 reais por cabeça, o sistema da Fogo de Chão apresenta algumas diferenças importantes. A mesa de saladas e acompanhamentos tem menos opções. Não há ali sushis, sashimis nem tentáculos de polvo. O pãozinho de queijo e a farofa são apenas regulares. Em compensação, o desfile de carnes é capaz de seduzir vegetarianos convictos. São oferecidos pelo menos doze cortes de primeiríssima, entre eles o bife ancho e o shoulder steak, retirado da parte dianteira do boi. Fiel à tradição gaúcha, a churrasqueira usa carvão, o que confere um sabor especial aos assados (no Porcão, usa-se uma versão elétrica). Os garçons também chamam atenção. À moda dos pampas, eles passam pelas mesas vestidos de bombachas, botas e lenço no pescoço. Sempre solícitos, costumam respeitar os sinais de verde e vermelho que indicam se a comilança deve ou não prosseguir. “Abrir uma filial no Rio era um sonho antigo”, diz Arri Coser, 49 anos, dono da rede, em sociedade com o irmão Jair, de 54.

    Divulgação
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    Bota antigo nisso. Com dificuldade de encontrar um ponto imobiliário a bom preço, a rede Fogo de Chão demorou mais de vinte anos para desembarcar e, curiosamente, era cobrada pela própria clientela. No exterior, os americanos olhavam os lugares onde ficavam os restaurantes e sempre perguntavam: “E o Rio?”. No Brasil, os comensais cariocas já representavam 7% da receita, mesmo sem nenhuma unidade por aqui. Havia também razões afetivas por trás do movimento. Foi na cidade, durante a década de 70, que os irmãos, nascidos na pequena Encantado, na Serra Gaúcha, deram os primeiros passos no mundo do rodízio, trabalhando como garçons na churrascaria Oásis, em São Conrado. “Eu me lembro dos dois. Eram tão magrinhos que o pessoal apelidou o Arri de Fio e o Jair, que era bem louro, de Canário”, recorda Dionizio Cauduro, dono do estabelecimento.

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    arquivo pessoal
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    A primeira aventura carioca durou apenas dois anos, mas foi fundamental na história dos irmãos. Por aqui, eles formaram um pé de meia que lhes permitiu voltar ao Rio Grande do Sul para realizar uma ambição: tornar-se donos de uma churrascaria rodízio, ou espeto corrido, como dizem por lá. Em Porto Alegre, no ano de 1979, compraram um restaurante decadente no bairro de Cavalhada, que seria o embrião do império atual. Mas o passo decisivo, de fato, foi dado em 1986, quando a dupla levou o Fogo de Chão para São Paulo. Ali, os dois fizeram fortuna e transformaram uma casa de madeira pré-fabricada em frente às pistas do Aeroporto de Congonhas em um colosso com 23 unidades, dezessseis delas nos Estados Unidos. No Brasil, além de Rio e São Paulo, a casa está presente em Salvador, Brasília e Belo Horizonte ? a antiga matriz de Porto Alegre foi fechada. “O nosso grande sonho era ter dois endereços: um para mim e outro para o meu irmão. Quem diria?”, diverte-se Arri.

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    Assim como acontece em operações militares, o retorno ao solo carioca exigiu um planejamento cuidadoso e resiliência para superar alguns percalços. Em 1990, os Coser se encantaram com a paisagem da Enseada de Botafogo e chegaram a negociar o ponto do Sol e Mar (hoje Real Astoria). Mas foram desaconselhados a bater o martelo. Ainda era forte a associação do lugar com o naufrágio do Bateau Mouche, que havia zarpado dali no trágico réveillon de 1989, em que morreram 55 pessoas. Eles então voltaram atrás. Uma nova investida voltou a ser articulada somente uma década depois, quando o grupo já começava a dar seus passos nos Estados Unidos. Os irmãos, no entanto, insistiam em se instalar na Zona Sul e recusavam, sistematicamente, endereços em áreas como a Barra, região que concentra metade dos rodízios da cidade. Em 2005, apareceu a oportunidade para ocupar parte da sede de esportes aquáticos do Botafogo, onde o restaurante funciona hoje. Uma série de problemas burocráticos e a desistência do clube na última hora atrapalharam o negócio. As conversas só foram retomadas no ano passado, em uma operação conjunta entre a churrascaria, a direção do alvinegro e os antigos inquilinos, com uma providencial ajuda de Eduardo Paes. Incomodado com a enorme estrutura de concreto encardido que estragava a paisagem, o prefeito queria ver o lugar revitalizado.

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    Ilustrações de Marcio de Castro
    Ilustrações de Marcio de Castro ()

    Elevado à condição de prato nacional, ao lado da feijoada, o churrasco é uma paixão entranhada na cultura local. As mesas dos rodízios estão sempre cheias, abrigando desde futebolistas até empresários. No Porcão, o atacante Fred, do Fluminense, virou uma espécie de lenda por suas garfadas vorazes e por pagar a conta dos torcedores vestidos com a camisa tricolor. Entre uma festa e uma partida de futevôlei, Ronaldinho Gaúcho costuma aparecer na Pampa Grill, na Barra, carregando um numeroso e barulhento entourage. “É a nossa outra praia, né?”, compara o ex-jogador Romário. As celebridades também batem ponto nas melhores casas do gênero. Os apresentadores Luciano Huck e Angélica estão mais que aclimatados à vocação carnívora local, carregando os dois filhos em suas incursões. A atriz Cláudia Raia chega a receber pratos prontos em casa por cortesia da Marius, e Deborah Secco não vê a hora de encerrar as gravações da novela Insensato Coração ? e, com elas, a sua dieta. “Sonho com uma picanha malpassada”, confessa. “Quando vou à churrascaria, fico longe das saladas.”

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    Não existe consenso a respeito da origem do serviço de rodízio. Segundo uma versão gaiata, tudo teria começado no início dos anos 1960, quando um garçom de um restaurante na cidade de Sapiranga, no Rio Grande do Sul, se confundiu e embaralhou todos os pedidos das mesas. Apavorado e com a casa cheia, ele resolveu oferecer os cortes disponíveis aos clientes. Outra variante, mais séria, prega que o tal espeto corrido nasceu no município paulista de Jacupiranga, às margens da BR-116, quase na divisa com o Paraná. Para evitar o desperdício, o gaúcho Albino Ongaratto, dono do lugar, resolveu passar as carnes pelas mesas. As filas na porta eram tão grandes que o modelo se espalhou pelas estradas do Paraná e de São Paulo. Um dos grandes defensores da segunda história é Dionizio Cauduro, da Oásis, que é sobrinho do próprio Ongaratto. “Ele me mandou trazer o rodízio ao Rio”, conta. Mito ou verdade, o fato é que na Oásis trabalharam, além dos irmãos Coser, o dono do Porcão, Neodi Mocellin, e Mairos Fontana, proprietário da Marius, outra churrascaria tradicional da cidade. “Isso aqui é uma grande família”, diz Cauduro.

    A chegada da Fogo de Chão consolida um fenômeno iniciado há uma década, com a abertura das primeiras filiais cariocas de restaurantes bem-sucedidos em São Paulo. Capital do Império e da República, o Rio foi por décadas o centro irradiador de tendências e hábitos de consumo que acabaram transformando a cidade em sede dos principais estabelecimentos gastronômicos do Brasil. Casas como o Bife de Ouro, no Copacabana Palace, e Le Bec Fin, no mesmo bairro, tornaram-se referência de qualidade e excelente serviço nos anos 50 e 60. Da mesma forma o Le Saint Honoré, no antigo hotel Le Méridien, serviu como porta de entrada para chefs do porte de Paul Bocuse e Laurent Suaudeau. A partir dos anos 80, a cidade mergulhou em um grande marasmo. Simultaneamente, a capital paulista deu um salto na década de 90, tornando-se o melhor centro gastronômico do país. Pouco a pouco, o padrão alcançado pelos paulistanos começou a ser exportado para o Rio. Em 2001, o Carlota, de Carla Pernambuco, abriu suas portas no Leblon, seguido pelo Gero, do grupo Fasano, que chegou no ano seguinte a Ipanema. Em 2007, foi a vez de o Fasano Al Mare instalar-se na Avenida Vieira Souto. Na esteira dos mais refinados, outros empreendimentos vieram, a exemplo do Ráscal, da Pizzaria Bráz, do bar Astor e da lanchonete The Fifties. “Eles trazem um modelo extremamente vencedor”, afirma Maria Beatriz Dal Pont, gerente de gastronomia do Senac-Rio. “Essa troca é ótima: os endereços cariocas vão subir de patamar.”

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    É natural que os concorrentes fiquem incomodados diante de uma ofensiva de vizinhos ricos e poderosos. Os donos do Porcão, porém, são elegantes e procuram minimizar os efeitos da invasão em sua praia. Seu argumento é que as duas redes guardam diferenças entre si. “Eles se mantêm firmes à tradição gaúcha. Nosso estilo é outro”, diz Amanda Mocellin, filha do fundador. Em todo caso, os Mocellin não assistirão placidamente ao regresso dos Coser. Eles planejam contra-atacar com a abertura de uma filial em São Paulo ? na verdade, uma volta à cidade depois de uma investida malograda nos anos 90. Também pretendem reforçar a atuação da marca Galeria Gourmet, um bufê variado a preço fixo. Sinais claros de que, apesar de toda a cortesia, os reis do churrasco no Rio não pretendem abrir mão da coroa.

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