Remonta a milhares de anos antes de Cristo o processo de produção dos vinhos, que se confunde com a própria história das civilizações. A partir do mosto da uva, a fermentação era feita de forma espontânea, sem adição de leveduras artificiais, aditivos de laboratório, controle de temperatura e tantas outras possibilidades abertas pelo avanço da tecnologia. Graças a técnicas que foram se desenvolvendo e se aprimorando, surgiram garrafas perfeitas, produzidas em série. Pode soar contraditório, portanto, que um grupo de produtores esteja cavucando as raízes e retornando aos vinhos ditos naturais, com o mínimo de intervenção possível. Mas é isso mesmo: basta olhar em volta, nas prateleiras de lojas e empórios, nas cartas de bares e restaurantes, como o Naturalie Bistrô, onde tais versões correspondem a mais de 80% do menu. Fenômeno semelhante ocorre no italiano Sult, na Fabro Padaria, no bar Belisco e em muitos outros endereços da boa mesa. “Tal qual a gastronomia, o vinho acompanha a onda da sustentabilidade e da preocupação com a origem dos alimentos. Se é importante no prato, será no copo também”, atesta a restauratrice Cristiana Beltrão, à frente do novo Bazzar à Vins, em Ipanema, onde um quinto da caprichada seleção é capitaneado pelos naturais.
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Nesse mercado, ainda restrito a nichos, mas em franca ascensão, constam também denominações certificadas como orgânicas (com uvas cultivadas sem agrotóxicos) ou biodinâmicas (a partir do conceito do filósofo Rudolf Steiner, de preservar a biodiversidade por meio de culturas heterogêneas e levar em conta, por exemplo, o calendário lunar). No caso dos naturais, não existe aqui legislação específica para reger uma definição formal acerca dos parâmetros de fabricação. Mesmo entre os produtores, o tema é controverso, ainda que eles sigam uma cartilha de práticas semelhante. Regra geral, deve-se envolver o mínimo possível de interferência no processo: trata-se basicamente do mosto da uva, cultivada de forma orgânica ou biodinâmica e fermentada a partir de leveduras selvagens, sem insumos enológicos para corrigir acidez, cor, aroma nem uso de sulfito como conservante (em certas situações, eles estão presentes em ínfima concentração). Quando bem elaborados, esses rótulos podem expressar de forma marcante o propalado terroir. “Um bom natural traduz o sabor e a origem das uvas de maneira mais autêntica que os vinhos cheios de maquiagem”, avalia a sommelière Elaine de Oliveira, responsável pelas cartas do Escama e das casas do grupo BestFork, dono de bandeiras como Giuseppe, Xian e Nolita.
Seus adeptos também costumam lhe ceder adjetivos como “vivos”, “imprevisíveis” e “surpreendentes”. “Descobri notas que jamais havia sentido antes. É um processo de encantamento, não há como voltar atrás”, relata a sommelière Maíra Freire, do estrelado Lasai, onde, entre os quarenta rótulos pinçados, a maioria se insere nesse espectro mais ecológico. Exemplares desses tempos pós-modernos, onde o consumo consciente é cada vez mais apreciado, eles contam ainda com outros fatores que pesam a favor, como o próprio aumento da oferta, uma perceptível subida na qualidade, o trabalho educativo daqueles que comercializam tais rótulos e a profissionalização na logística das importações. “Há um amadurecimento do público para esse tipo de vinho”, opina o padeiro Rafa Brito Pereira, da The Slow Bakery, que viu o consumo de tais rótulos crescer exponencialmente. Ali, as vendas das tacinhas naturebas se multiplicaram por oito nos últimos três anos.
A escalada desses rótulos se revela também na Fabro Padaria, onde os vinhos naturais, orgânicos e biodinâmicos respondem pelo maior naco do faturamento depois de pães, sandubas e itens de confeitaria. A saída nessa prateleira de vinhos, entre 110 e 960 reais, disparou 87% em três meses. “Noto que a demanda só tem subido, impulsionada por um mundo que caminha para hábitos mais saudáveis e sustentáveis”, afirma o sócio Gabriel da Muda. Os entusiastas da enologia natural propalam ainda outros benefícios. “Adoro um vinho, mas às vezes ficava com ressaca de quase uma semana. Quando comecei a tomar os naturais, não senti mais isso, foi uma descoberta”, relata a chef e professora Manu Zappa. Em uma de suas aulas, a advogada carioca Inês Newlands, 56 anos, embrenhou-se nesse universo. Adepta de exercícios físicos, de uma alimentação sem carne e das placas solares em casa, ela detectou nos naturais uma afinidade com seus valores. “Para além do processo de produção, me surpreendem pela delicadeza e pela complexidade, fora que os rótulos costumam ser divertidos”, enaltece a já experimentada consumidora.
Entre tantos elogios, despontam também críticas. “O preço ainda é bem acima dos convencionais”, diz Inês, de viagem marcada para Portugal e Itália, roteiro em que pretende garimpar boas garrafas. Outra queixa não tão rara assim diz respeito aos “defeitos” que esses rótulos, justamente por contar com uma produção sem maquinário nem correções químicas, podem conter. “Já provei espetaculares e outros completamente desequilibrados. Equilíbrio é fundamental”, pondera Rogerio Dardeau, professor da Associação Brasileira de Sommeliers (ABS-Rio). Para Cristiana Beltrão, a adesão aos rótulos naturais pode ser comparada à realização de um adolescente provando cerveja pela primeira vez. “Você pode até dizer eca, mas logo vai adorar”, observa ela. “Vejo beleza nessas arestas, em não ser tudo perfeito, desde que não haja ali aroma ou sabor desagradável.” Os experts são unânimes em dizer que o segredo reside na escolha de um bom produtor. “Tem muito vinho autointitulado orgânico ou natural que na verdade não é, por isso acompanhamos o processo produtivo de perto”, explica Alain Ingles, da importadora Gavinho, referência no setor.
Assim como as cervejas artesanais encontraram certas barreiras quando começaram a jorrar das torneiras por estas bandas, os vinhos naturebas também esbarram em obstáculos. “Tem gente que ainda enxerga como modismo, a paleta mexicana ou o frozen yogurt da vez, mas eles vão muito além”, garante a chef Nathalie Passos, do vegetariano Naturalie Bistrô, em Botafogo, dono de uma carta formada por naturais, orgânicos e biodinâmicos. “É um método ancestral, que acompanha uma tendência da gastronomia, de buscar a comida mais limpa e pura no sabor dos alimentos”, arremata. De fato, o movimento finca raízes nos anos 1980, na região de Beaujolais, ao sul da Borgonha, na França. Descontentes com a massificação do vinho, os produtores locais passaram a cultivar uvas organicamente e a usar métodos de fermentação espontânea. A tendência alastrou-se e ganhou representantes de peso, como o celebrado Josko Gravner, radicado em Friuli, na Itália, e com garrafas ao preço médio de 1 300 reais. Em diversos pontos do planeta, mesmo sem tradição em vinhos, eles se espraiaram, inclusive no Brasil. “Sou testemunha de como essa onda influenciou fabricantes convencionais, que começaram a buscar melhorar suas produções e, com isso, sua posição no mercado”, relata Dardeau. Nestas praias desde a primeira década dos anos 2000, a corrente vem recebendo gás renovado de cinco anos para cá — e ainda tem, naturalmente (com o perdão do trocadilho), longa estrada a percorrer. Ao seu tempo, esses rótulos vão conquistando taças na cidade.
As taças da vez
Os estilos em voga no mundo dos vinhos mais artesanais
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No mercado carioca, borbulham tendências na seara dos rótulos naturebas, como os pét-nat (pétillant naturel), um espumante produzido por método ancestral, em que o líquido é engarrafado antes de completar totalmente sua primeira fermentação, finalizando-a na garrafa, libertando o “gás” natural que não lhe é tão característico. “São muito fáceis de beber e harmonizam com o Rio”, define a sommelière Maíra Freire. Os vinhos laranja, à base de uvas brancas, mas vinificados como tintos, também têm feito sucesso, assim como os produzidos com a renegada uva isabel, normalmente utilizada nos vinhos de garrafão (ela não é da família vitivinífera). Há outro tipo, contudo, em alta, sobretudo pelo custo-benefício: o Vinho de Combate, um projeto encabeçado pela sommelière Gabriela Monteleone, pelo engenheiro Ariel Kogan e o viticultor e enólogo Luís Henrique Zanini (Era dos Ventos) com uvas provenientes de pequenos produtores e fermentação espontânea — tudo vendido em bag in box de 3 litros (sim, aquelas caixinhas que ainda não tinham emplacado por aqui). O intuito é tornar o vinho natureba mais acessível no dia a dia. A novidade, com duração de até trinta dias após aberto, está disponível em lugares como a Fabro Padaria, o Trégua e o Belisco (onde a taça custa 25 reais). Para pessoas físicas, a embalagem sai a 240 reais no site loja.familiakoganwines.com.