No início do século passado, já bafejado pela glória, Oswaldo Cruz fraquejou. “Infelizmente no Instituto as coisas não vão a bom sabor, o que me tem trazido as maiores contrariedades íntimas…”, escreveu em novembro de 1906. Na carta ao colega Henrique da Rocha Lima, o missivista manifestava desalento diante de discussões internas no Instituto Soroterápico, em Manguinhos, na Zona Norte carioca, entidade de alta ciência que comandava e que dois anos depois viria a ganhar seu nome.
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Havia então debates acirrados sobre a eficácia da vacinação, vejam só. Pois se até o grande sanitarista, após livrar o Rio de males crônicos e epidêmicos como a febre amarela e a peste bubônica (e, de lambuja, enfrentar o histórico motim popular da Revolta da Vacina, em 1904), ainda tinha razões para desabafar, imaginem o que passa pela cabeça dos mortais na linha de frente neste momento cercado de tantas incertezas. Na temporada de isolamento social, medida necessária para refrear o ímpeto da pandemia, uma tropa anônima não pode parar de trabalhar. São profissionais de atividades essenciais, ligadas à saúde, à segurança, à limpeza, ao transporte, ao comércio de remédios e alimentos. Ao saírem de casa todos os dias, eles testemunham o desenrolar da batalha contra o vírus e, cada qual a seu modo, contribuem para que a vida siga adiante.
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A turma que guerreia dentro dos hospitais, às voltas com precariedades e interrogações que surgem a todo instante diante do desconhecido, é um enfático exemplo de empenho em prol do bem coletivo. Muitos têm no rosto marcas fundas deixadas por máscaras e óculos, efeito de horas intermináveis no batente. Às vezes, em turnos excessivamente atribulados, não conseguem nem comer ou ir ao banheiro. Médico intensivista, especialidade requisitada nos casos mais graves de pacientes da Covid-19, Vicente Dantas, 43 anos, desdobra-se em jornadas de até 100 horas semanais. Ele trabalha no Copa Star, joia da saúde privada, no Hospital Naval Marcílio Dias e no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ. Como pesquisador, também está envolvido em estudos de testagem de medicamentos para deter a doença.“Quando o vírus atingiu as camadas populares e a coisa explodiu, o número de respiradores alcançou o limite”, diz o médico, que, no último dia 20, contabilizou dezoito intubações em uma noite no hospital da UFRJ. Como tantos outros que se lançam nas ruas, ele reveste sua rotina de cuidados impensáveis no mundo pré-coronavírus, inclusive para proteger a mulher e as duas filhas, de 5 e 8 anos. Ao chegar em casa, deixa os sapatos do lado de fora e, em um balde na entrada, as roupas usadas. Chave, celular e demais apetrechos ficam ensacados ou ganham um banho de álcool em gel. Depois, corre para o chuveiro, em um banheiro que só ele usa. Executada toda a operação, está pronto para… ajudar nas tarefas domésticas. “Dispensei a empregada, pagando o salário. Agora lavo banheiro, passo roupa, dou uma olhada nos estudos das meninas. O sentimento de exaustão é total”, resume.
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Em certos casos, os sacrifícios envolvem instabilidade financeira. Foi o que ocorreu com Gustavo da Silva, 27 anos, formado em ciências biológicas com especialização em microbiologia e imunologia. Convocado para integrar uma força-tarefa no enfrentamento da Covid-19, ele entendeu a envergadura da missão e interrompeu seu projeto de estudos do HIV, pelo qual tem bolsa de doutorado no valor de 2 220 reais. “É uma bolsa de dedicação exclusiva. Assumi os riscos de suspender o trabalho e perdê-la para atuar como voluntário no Laboratório de Virologia Molecular da universidade”, conta. Seu dia a dia agora consiste em manipular agentes patogênicos e produtos químicos perigosos. O expediente ultrapassa doze horas, de segunda a sábado. “O vírus não tira folga, nós também não”, sintetiza. Uma vez por semana, a equipe da qual faz parte é testada para confirmar se houve contágio, um temor compartilhado por quem não pode estar em home office. Depois de isolarem o vírus para pesquisar sua biologia, ele e os colegas se concentram na busca de drogas para combatê-lo. “A ciência costuma ser pouco recompensadora. Erramos milhares de vezes para chegar a um êxito. Do coronavírus, todo dia alguém descobre uma novidade. É bom saber que podemos fazer diferença”, ressalta.
Estima-se que, no Rio, um de cada quatro profissionais envolvidos no combate à Covid-19 tenha sido infectado, número que não destoa das estatísticas internacionais e faz gente de todo o mundo ir às janelas para bater palmas em agradecimento a quem põe a própria vida em risco na tentativa de salvar a dos outros. Raquel de Souza Ramos, 44 anos, e Líbia Bellusci, 36, são enfermeiras da rede pública e contraíram a doença. Felizmente, não precisaram de internação. Raquel, que tem família em Petrópolis, não vê a avó, de 92 anos, e os pais desde o início da pandemia. “Os vizinhos já ficavam tensos mesmo antes de eu testar positivo, quando me viam chegando do trabalho”, lembra. Curada, mas ainda se queixando da falta de olfato, ela está de volta ao posto no Hospital Pedro Ernesto. Reassumiu a função no último dia 23, quando a taxa de ocupação dos leitos reservados a pacientes da Covid-19 atingia perigosos 96%. A colega Líbia Bellusci viveu a quarentena dentro do quarto na casa da mãe, que passou a cuidar de seu filho em tempo integral. “Ele bate na porta, pergunta se eu não o amo mais. Ontem fez aniversário, 4 anos, até apareci na sala, tirei foto, mas fiquei de longe, não pude abraçar, não pude beijar”, lamenta. E desabafa: “As pessoas dizem que, quando isso acabar, querem ir à praia, querem viajar, festejar com os amigos. Nós, da enfermagem, só queremos estar vivos, mais nada”.
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A aridez imposta pela pandemia pode deixar sequelas. “Chamamos esse tipo de evento de trauma complexo, ao qual as pessoas não são expostas por um dia, por uma vez, mas durante um período”, ensina Mariana Luz, coordenadora do ambulatório de transtorno de stress pós-traumático do Instituto de Psiquiatria da UFRJ e pesquisadora do Laboratório Integrado de Pesquisa do Estresse. “Dramas como o da Covid-19, vividos coletivamente, se aproximam das grandes catástrofes naturais, estamos todos diante de um grande problema externo.” A analogia com um cenário bélico foi feita por líderes como o presidente francês Emmanuel Macron e a chanceler alemã Angela Merkel – em raro pronunciamento na TV, ela declarou estar frente ao “maior desafio desde a II Guerra Mundial”. “Como um soldado, o médico, o enfermeiro e outros que estão hoje na linha de frente conhecem os riscos e enfrentam a situação assim mesmo, se arriscando por um bem maior, por um senso de propósito”, analisa Mariana Luz.
Socorrista e condutor do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, André Lima, 42 anos, relata: “Agora é comum passarmos as escalas de 24 horas trabalhando sem parar, em até dezoito atendimentos por plantão”. A maioria dos casos é associada à pandemia. No caminho para casa, ele vai digerindo a dureza da luta contra o inimigo invisível com o qual os médicos estão aos poucos aprendendo a lidar. André é casado com Juliana Brandão, enfermeira, e o mais velho de seus três filhos, Edmundo, trabalha na recepção do Hospital Silvestre. “Vivemos em tensão. Não podemos esquecer as regras de proteção no trabalho nem em casa”, diz. “Infelizmente, a doença está atingindo a todos nos hospitais: motoristas, enfermeiros, pessoal de laboratório e de recepção.”
Além do estado de apreensão, um sentimento bom de orgulho une profissionais que duelam contra a doença e cuidam dos enfermos aos que, não menos essenciais, mantêm em funcionamento as engrenagens da sociedade. O cearense João de Sousa Bonfim Neto, 49 anos, quinze deles na rede de supermercados Hortifruti, acrescentou atribuições às que já desempenhava. Ele atende clientes, coordena o trabalho de operadores de caixa e empacotadores e administra o serviço de delivery, cuja média saltou de oitenta para 250 entregas por dia. Com a evolução da pandemia, também passou a “bancar o psicólogo”, como diz. “Temos equipamento de prevenção, álcool em gel, paredes de acrílico nos caixas, marcas no chão para o distanciamento, mas o aumento dos casos deixou colegas temerosos. Conversamos bastante, orientamos, batemos papo para deixar a equipe segura e tranquila”, conta. “Está mais puxado, mas é gratificante, a gente ajuda como pode.” Foi movida por esse espírito solidário que emerge com a pandemia que Daiana Paula da Silva, 38 anos, gerente farmacêutica de uma loja da rede Pacheco, acompanhou três corridas insanas na cidade: a procura por álcool em gel, a caça a remédios de eficácia ainda não comprovada e o ataque aos estoques de máscaras. “Muita gente ainda vê uma novidade na mídia e, no desespero, quer comprar. Cabe a nós dar a orientação correta, voltada para as necessidades reais”, reforça.
Técnico da Light, Bruno Pereira de Santana, 32 anos, manteve a rotina de manutenção e reparos do sistema elétrico, mas ganhou preocupação extra. “Cresceu o número de pessoas em home office. Além disso, temos hospitais com maior movimento e clientes sensíveis, que dependem do suporte de aparelhos de saúde e remédios na geladeira para sobreviver. Esses são prioridade total”, diz. Com o mundo tal qual o conhecemos revirado do avesso, ninguém acredita muito que, ao acionar um serviço, conseguirá obtê-lo. “Quando a gente chega, parece que o sujeito ganhou na Mega-Sena”, compara. É dessa natureza o reconhecimento que incentiva o gari Marcelo Florêncio da Silva, 42 anos, os últimos dezessete dedicados à limpeza da cidade. O trabalho de higienização, com sabonete diluído e borrifador, em espaços como pontos de ônibus e de BRT, além das favelas, vem sendo aplaudido. “Tem gente que passa de carro e buzina, os pedestres elogiam, tiram dúvidas”, diz o orgulhoso gari.
Mesmo ainda na guerra, há quem já olhe para o horizonte sem o vírus e o aprendizado que ele pode deixar. “O mundo vai mudar. No nosso caso, temos a oportunidade de derrubar a crença um tanto turva de que a polícia só lida com o combate ao crime. O bandido a gente vai prender, claro, mas a prioridade deve ser o atendimento ao cidadão, como demonstram nossos esforços em tempos de pandemia”, avalia Leonardo Nogueira, 42 anos, major da Polícia Militar do Rio. Lotado na Coordenadoria de Polícia Pacificadora, ele acompanha ações de arrecadação de alimentos para distribuição em toda a cidade. “Já ultrapassamos 12 toneladas em dez dias de campanha”, comemora.
O major Nogueira lembra que, quando o assunto coronavírus passava a ganhar força por aqui, em meados de março, estava supervisionando o policiamento nas ainda lotadas praias da Zona Sul. “Foi uma dificuldade, a gente ficava na dúvida se cumprimentava, se apertava as mãos”, conta. Logo a realidade se impôs, com a adoção de material de proteção e outras providências, entre elas a higienização periódica das viaturas. “Nossa munição agora é a .70, o álcool que carrego no bolso”, dá um toque de humor.
Nesse pelotão de trabalhadores, o motoboy Luis Carlos Ferreira, 37 anos, flertou com o negacionismo, reação bastante comum quando a pandemia começava ainda a mostrar sua face. “No princípio achava frescura, coisa de rico”, diz. Quando de repente chegaram notícias de colegas contaminados, dois deles em estado grave, máscara e álcool em gel tornaram-se itens obrigatórios. Com uma multidão de gente confinada recorrendo aos serviços de delivery, a média de 150 quilômetros rodados sobre a motocicleta saltou para 350. Clientes mais frequentes, e solidários, contribuem com a doação de itens de higiene e proteção. O apoio, da forma que vier, é essencial para
que gente como ele, o policial Leonardo, a enfermeira Líbia e tantos outros possam sair às ruas com um mínimo de segurança, enquanto o restante da população trava sua batalha contra o vírus em casa.