A corrida na Fiocruz para produzir vacina contra Covid-19 para o Brasil
Quem está na linha de frente da engrenagem montada para fabricar quase 1 milhão de doses diárias prometidas a partir de abril
Um novo capítulo na história da centenária Fiocruz, fincada com seus ares mouriscos na Zona Norte do Rio, começou a ser escrito a muitas mãos em 6 de fevereiro de 2021. Foi o dia em que desembarcou ali o princípio ativo da vacina contra o novo coronavírus — o tão aguardado ingrediente farmacêutico ativo, mais conhecido como IFA (uma das várias siglas que ingressaram no vocabulário global nestes tempos pandêmicos).
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O primeiro carregamento, suficiente para produzir 2,8 milhões de doses, fez viagem extensa: saiu de Xangai, na China, para chegar a praias cariocas dois dias mais tarde, na noite daquele sábado. Toda uma logística havia sido montada para preservar tão valiosa carga. Armazenado em contêiner a 55 graus negativos, o material percorreu cerca de 9 quilômetros do Aeroporto do Galeão, escoltado por um vigilante esquema de segurança, até o câmpus da Fiocruz, onde foi aclamado por uma turma de cientistas que não via a hora de pôr as mãos no insumo. Muitos eternizaram o momento em fotos e vídeos.
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Era o que faltava para dar início à produção nas instalações da fábrica de Bio-Manguinhos. “Esperávamos pelo IFA ansiosamente. Foi um acontecimento. Isso é ouro”, celebra, agora aliviado, Mauricio Zuma, diretor do instituto e integrante de uma força-tarefa que promete fazer circular no país 104,4 milhões de doses até julho de 2021 e, até o fim do ano, mais 110 milhões. Espera-se ainda 8 milhões de doses prontas da Índia, que farão parte do montante capaz de imunizar metade da população brasileira.
No dia em que a carga chegou, Zuma lembra que demorou a pegar no sono, tamanha era a empolgação com a largada que fora dada em uma empreitada vital: fabricar vacinas em larga escala num momento em que o Brasil precisa tanto delas. “Estamos trabalhando em capacidade máxima para entregar os milhões de doses necessárias para reverter a curva pandêmica”, conta o diretor de Bio-Manguinhos. Sob seu comando, um batalhão de profissionais fica a postos dia e noite, de forma abnegada e exaustiva, para dar conta de ambiciosas remessas do imunizante, fruto da parceria com a Universidade de Oxford e o laboratório AstraZeneca.
Diante de uma missão de tão ampla envergadura, cada dia reserva uma emoção — e nem sempre a notícia é boa, mas os obstáculos vão sendo contornados. Na última semana de fevereiro, uma falha em um equipamento que se encarrega de tampar os frascos das vacinas emperrou a produção. Já foi sanada, só que acabou por reduzir a capacidade de abastecimento de doses em março para o Programa Nacional de Imunizações: caiu de 15 milhões para 3,8 milhões.
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Neste momento, o ritmo segue a toda, embalado por uma equipe ciente de sua imensa responsabilidade em frear a pandemia. “Costumo dizer a eles que cada recorde em diagnósticos e mortes por Covid, cada pai de um amigo que se vai, deve servir de combustível para dar o nosso melhor”, diz Felipe Leal, 34 anos, gestor da divisão de formulação, que, desde a chegada do IFA, acompanha o processo do descongelamento da matéria-prima até a liberação para o envase.
Quando se fala em Fiocruz, logo vem à mente o icônico castelo encarapitado sobre um morro que se avista da Avenida Brasil. Mas é num conjunto de prédios modernos lá dentro que os imunizantes revestidos de otimismo vão se tornando realidade. Trata-se de uma área que abrange o Complexo Tecnológico de Vacinas de Bio-Manguinhos, o coração da produção. Painéis distribuídos ali não deixam dúvida sobre o objetivo que envolve a todos: “Aqui nós produzimos a vacina Covid-19”.
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Dada a delicadeza da tarefa e a intensa movimentação no câmpus, onde nunca houve tanta gente em vaivém ao mesmo tempo, a segurança ganhou reforço, com a instalação de câmeras, refletores e vigias. “Tem sido uma rotina dura. O trabalho não acaba, as pessoas não desligam nunca, mas vale a pena”, avalia o químico Ricardo Lopes, 47 anos, há 25 no instituto e hoje à frente do departamento de processamento final, que abarca desde o descongelamento do IFA até a embalagem da vacina.
Entre os cerca de 2 000 funcionários de Bio-Manguinhos, 300 estão conectados direta e indiretamente à fabricação da vacina, em um árduo passo a passo que vai da formulação à liberação (veja todas as etapas). A farmacêutica Ana Carolina Ajorio, 38 anos, atua no controle de qualidade e tem, entre suas funções, quantificar o número de partículas virais a fim de saber se o que está contido ali, naquela dose, será o bastante para imunizar uma pessoa.
O trabalho exige extrema atenção e cuidado, assim como várias outras fases dessa complexa engrenagem. “No caso da vacina contra a Covid-19, tudo foi diferente e mais desafiador, a começar pelo tempo para nos prepararmos para o mutirão — mínimo. Quando fizemos o teste inicial para treinar e depois validar a metodologia, nos disseram ser praticamente impossível acertar de primeira, mas ficou perfeito. Aí foi um choro geral”, lembra Ana Carolina, que, mesmo já diagnosticada com o novo coronavírus, ainda hoje obedece a um protocolo sanitário rigoroso para entrar em casa. As roupas vão direto para a máquina com desinfetante, sapatos ficam do lado de fora e, a cada saída, o cabelo é lavado no banho.
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No curso da história, outras vacinas consumiram muito mais tempo entre a pesquisa e a espetadela final. No caso da caxumba, a mais rápida desenvolvida antes da anti-Covid, passaram-se quatro anos desde que o microbiologista americano Maurice Hilleman coletou uma amostra da garganta da filha, que teve a doença, até a produção propriamente dita, em 1967. O imunizante em questão, desenvolvido por Oxford em parceria com a AstraZeneca, só conseguiu chegar ao mercado em menos de um ano graças a pesquisas que avançavam em outra direção, fincadas na chamada “tecnologia de vetor viral ChAdOx1”.
A metodologia foi criada a partir da modificação de um vírus que causa um resfriado comum em chimpanzés. Além de gerar forte resposta imunológica no ser humano, ele não se replica — ou seja, não causa infecção. Já havia sido inclusive adotado em testes clínicos de vacinas para outras doenças, a exemplo da síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers). Depois que os cientistas chineses detectaram e compartilharam o código genético do novo coronavírus, foi com base nesse conhecimento acumulado que se tornou possível produzir o imunizante com tamanha agilidade.
Após a batelada de testes clínicos, a fórmula Oxford/Astrazeneca foi aprovada para uso emergencial no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em janeiro, e o registro definitivo veio em 12 de março. Logo de saída, a tecnologia do imunizante interessou à Fiocruz, que ganhará domínio sobre ela. “Ele tem uma apresentação líquida, diferente de outros de nosso portfólio, que são liofilizados (dispõem de uma espécie de pastilha em pó no fundo do vidrinho que é reconstituída antes da aplicação), um processo muito demorado”, explica o vice-diretor de produção de Bio-Manguinhos, Luiz Lima, de 48 anos.
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A infraestrutura para dar a partida na produção estava praticamente montada na Fiocruz — boa parte do material e do equipamento empregados na vacina anti-Covid já era utilizada na fabricação de antídotos como o da febre amarela.
O percurso até se firmar o acordo com a universidade britânica e o laboratório, no entanto, foi cercado de negociações e reuniões infindáveis, que começaram em maio de 2020. Àquela altura, ainda havia incertezas sobre a eficácia do imunizante. Coordenadora dos centros de pesquisa da vacina de Oxford no Brasil, a médica carioca Sue Ann Costa Clemens, responsável por estabelecer a ponte entre o Ministério da Saúde e a AstraZeneca, não esquece o momento em que finalmente o martelo foi batido, em um encontro virtual, no início de setembro. “Tirei até foto da tela. Muito emocionante ver o contrato sendo assinado. É como se fosse a expectativa pela chegada de um filho para lá de aguardado”, compara, cheia de empolgação. E brindou com champanhe.
“A partir dali, só pensava: agora aumentou ainda mais minha responsabilidade em provar a eficácia dessa vacina”, revela Sue Ann, que, sendo profissional da saúde, recebeu a primeira dose no posto de saúde da Gávea. “Na minha vida, tomei várias vacinas das quais participei da pesquisa clínica, mas essa é fruto de uma pandemia, é diferente”, diz a cientista.
Toda a alegria em torno da chegada do IFA se justificava naquele 6 de fevereiro. Afinal, o Brasil não contava com a substância fundamental para a feitura do imunizante. A previsão é que, a partir do segundo semestre, a produção dela seja própria, com a liberação da Anvisa e a transferência total de tecnologia da plataforma da AstraZeneca para Bio-Manguinhos.
Agitada, a fábrica faz lembrar uma casa para onde as pessoas estão se mudando, cheias de caixas e equipamentos espalhados — entre eles biorreatores de última geração, em fase de testes. Os primeiros lotes 100% nacionais são aguardados para o segundo semestre. Respeitado o cronograma, até dezembro a Fiocruz entrega 222,4 milhões de doses. “A sensação é de estarmos participando da história enquanto ela é escrita”, define a gaúcha Ana Cláudia Bergamo, 32 anos, do setor de apoio e pesquisa, por onde passam todos os ingredientes da vacina e o produto finalizado para análises.
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Assim como seus colegas, ela viu sua rotina se pôr de pernas para o ar. “Passamos por auditoria para nos qualificar para um nível mais avançado de biossegurança. Até nossa paramentação mudou. Trocamos um jaleco semelhante ao de médico por um macacão hidrorrepelente, para evitar qualquer tipo de contaminação”, relata a farmacêutica.
Criada no fim do século XIX em meio a uma grave crise sanitária, a Fiocruz (à época, Instituto Soroterápico Federal) teve como primeira incumbência produzir soros contra a peste bubônica. Sob a direção do sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917), a entidade combateu três grandes epidemias no Rio de Janeiro, então capital federal: peste bubônica, varíola e febre amarela. Foi lá também que, em 1909, o médico e biólogo Carlos Chagas anunciou ao mundo a descoberta da tripanossomíase, que viria a ser batizada de doença de Chagas.
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Reconhecida e prestigiada internacionalmente, a Fiocruz, que criou vacinas como a da febre amarela e a da varíola (hoje integrante da tríplice viral), esteve na liderança do isolamento do vírus da aids, na década de 80, e, mais recentemente, foi pioneira ao associar a infecção de zika à malformação congênita, para citar alguns exemplos nestes 120 anos de trajetória (veja outros no quadro).
A instituição se prepara agora para dar mais um salto: nos próximos quatro anos, colocará de pé o Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde (Cibs), o maior empreendimento de biotecnologia da América Latina. “A fábrica não vai dever nada às mais modernas do mundo”, garante Zuma.
Embora rejeitem a alcunha de heróis — “é o nosso trabalho” —, os cientistas, pesquisadores e técnicos por trás da vacina contra a Covid-19 estão cientes de viver um momento único, histórico. Afinal, passam noite e dia debruçados sobre um antídoto que pode parar uma pandemia que já contaminou mais de 11 milhões de brasileiros — só no Estado do Rio, foram mais de 600 000 infectados e cerca de 35 000 mortes. “Minha filha fala com o maior orgulho que o pai trabalha na Fiocruz. Essa crise também serviu para reforçar a importância da ciência e de todo o esforço das pessoas que vivem dela”, frisa o biólogo Fabio Henrique Gonçalez, 47 anos, gerente de projeto de vacinas.
Os corredores da fábrica, nestes tempos de luta contra o vírus, andam cheios de histórias. Outro dia, Luiz Lima recebeu uma tarefa especial. A mãe de um colega da época de escola não queria tomar a vacina de jeito nenhum. Ele pediu então ao engenheiro para gravar um áudio, explicando tim-tim por tim-tim como ela funcionava, a fim de convencê-la a tomar a necessária picada. Dias depois, a senhora se vacinou. “Isso me marcou, não só por conhecê-la há mais de quatro décadas, mas por entender quanto depositam confiança em nosso trabalho”, desabafa o incansável especialista. Um trabalho que traz como resultado artigo essencial a estes tempos estranhos: esperança.
Como será o amanhã
O novo complexo da Fiocruz vai quadruplicar sua capacidade de produção
São cerca de 580 000 metros quadrados, o equivalente a setenta campos de futebol, com 334 000 metros quadrados de área construída. Localizado em Santa Cruz, Zona Oeste do Rio, o vasto terreno vai abrigar o Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde (Cibs), novo braço operacional de Bio-Manguinhos, responsável pela fabricação de vacinas, kits para diagnóstico e biofármacos.
Embalado por investimentos de 3,4 bilhões de reais, o complexo já está em obras e vai permitir quadruplicar a produção da Fiocruz — número que poderá ser ainda maior, dependendo do mix de produtos —, para atender prioritariamente às demandas da população brasileira por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).
A previsão é que os primeiros prédios de um total de nove estejam prontos até 2023 e o restante daqui a quatro anos. “Com esse novo centro, poderemos dar respostas mais rápidas a futuras emergências sanitárias. É um projeto grandioso, ambicioso, de tecnologia de ponta e que significa a nossa autossuficiência, já que nos permitirá dispensar grande parte da importação de matérias-primas”, enumera Mauricio Zuma, diretor de Bio-Manguinhos. Ponto para o Brasil — e para o Rio.
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