Não é só o bonde
Abalada com a tragédia que matou cinco pessoas e feriu mais de cinquenta, Santa Teresa sofre com problemas que vão da má conservação urbana à insegurança nas ruas
Poucos bairros são tão marcados por um símbolo quanto Santa Teresa. Seus bondes amarelos e sem portas, que subiram o morro pela primeira vez em 1877 e foram eletrificados em 1896, são a alma do bairro, há muito habitado por artistas e intelectuais de várias gerações. Mas a imagem romântica que se criou desde que as relíquias deram o sacolejo inaugural sofreu uma ruptura definitiva com a tragédia que matou cinco pessoas e ainda feriu outros 57 passageiros. Com rara clareza, o abalo revelou a negligência das autoridades na gestão do transporte. Nos últimos dois anos, o saldo macabro é de sete mortes. Na maioria dos casos, eram pessoas que queriam apenas realizar um programa turístico. Acabaram perdendo a vida. Embora seja o episódio mais grave, mais revoltante, a triste ocorrência está longe de ser o único problema da vizinhança.
Apesar do charme da área, a impressão geral é de abandono e insegurança. Suas ruas mal iluminadas e os assaltos frequentes, como o ocorrido há pouco mais de um mês no Hotel Santa Teresa, deixam no ar a sensação de que o local continua a ser uma zona de risco para turistas e moradores. Basta uma visita para compreender o sentimento. Na Rua Aprazível, por exemplo, torna-se assustador passear a pé, ou mesmo de carro, depois que o sol se põe. O acesso para quem vem pela Lapa não é diferente, de tão sombrio. Na Rua André Cavalcanti, que começa na Rua do Riachuelo e segue até a Rua Almirante Alexandrino, a principal via do bairro, o cenário é mais aterrador: existem ali um ponto de venda de drogas e, logo adiante, uma gangue de ladrões que ataca visitantes e residentes. Em toda a redondeza, chamam atenção os paralelepípedos soltos, obstáculos para a travessia de carros e pedestres, e as calçadas sem nenhum sinal aparente de conservação. “Muitos postes de iluminação e trechos da fiação elétrica estão podres. Tentamos agendar uma reunião com o presidente da Rioluz, mas parece impossível”, afirma a presidente da Associação dos Moradores e Amigos de Santa Teresa (Amast), Elzbieta Mitkiewicz.
O descaso torna-se mais intrigante por se tratar de uma região icônica da cidade, polo turístico cujas arquitetura e geografia remetem a Montmartre, o charmoso bairro parisiense, também encravado em um morro, onde fica a Basilique du Sacré-Coeur e no qual chegaram a viver pintores como Pierre-Auguste Renoir e Vincent van Gogh. Guardadas as devidas proporções, Santa Teresa possui um apelo semelhante. Marca registrada, diversas casas servem de ateliê para artistas plásticos, e a vizinhança toda respira essa vibração, seja através da arte, seja através da música. Sua paisagem, outro traço notável, é largamente reconhecida no exterior. Tanto que o último sucesso do diretor carioca Carlos Saldanha, a animação Rio, tem uma de suas cenas mais emblemáticas durante um passeio ao bairro. De bonde.
Mesmo com seus encantos, morar hoje por ali é uma opção que demanda esforço. Com infindáveis imóveis tombados, muitos proprietários encontram dificuldades para reformar suas casas. Sobre as obras mais primárias pesam exigências de conservação que encarecem os custos e acabam ajudando a deteriorar as propriedades. Quando as construções irregulares estão em pauta, a fiscalização já não funciona de forma tão eficiente. Muitas moradias ilegais são levantadas em áreas próximas a casarões do século XIX. Na mesma seara, o abandono de prédios públicos fica evidente. O antigo Hospital Quarto Centenário, na Almirante Alexandrino, tornou-se um caso clássico. Fechado desde 2007, ele foi anunciado como futura unidade da Polícia Militar, que instalaria no edifício uma companhia com 130 homens, um hotel para os soldados que servem nas imediações e um batalhão especial para o turismo. Até agora, o projeto está no papel.
Pela importância histórica e pelo potencial turístico, Santa Teresa merecia um cuidado maior. Nascido a partir de um convento no século XVIII e logo transformado em reduto da aristocracia carioca, o bairro é um dos grandes símbolos do Rio. Sua degradação, portanto, não deixa de ser um atestado de incompetência para uma cidade que vai sediar uma Olimpíada. É verdade que foram inauguradas ali duas Unidades de Polícia Pacificadora para controlar o complexo de dezenove favelas. Mas ainda é pouco. “Perto de toda a transformação que o estado está vivendo, com obras homéricas, solucionar esses problemas parece um desafio pequeno”, afirma Natacha Fink, presidente da associação de moradores e empreendedores do bairro (Ame Santa). Ela tem razão. Que o problema dos bondes e as vidas que se perderam sirvam, ao menos, para abrir os olhos dos responsáveis.