Somadas as trajetórias, dá mais de um século a serviço das artes. Boa parte do caminho, os dois atores trilharam juntos. E ainda protagonizaram um fenômeno dos palcos: a comédia O Mistério de Irma Vap estreou em novembro de 1986, ficou em cartaz por onze anos e foi parar no Guinness Book of Records. De volta ao circuito, os bons amigos Marco Nanini, com a montagem de Ubu Rei, no Teatro Oi Casa Grande, e Ney Latorraca, no musical Vamp, que ocupa o Teatro Riachuelo a partir de sexta (17), encontraram-se a convite de VEJA RIO. Vejam o que deu.
Irma Vap, o fenômeno
Nanini — Ficamos onze anos em cena com Irma Vap. Ali comecei a perceber as possibilidades de enfrentar a rotina, que é uma das características da nossa profissão. Como nos dávamos bem, a ponto de brigar muitas vezes e fazer tudo voltar ao normal, ficamos apresentando o espetáculo até achar que as coisas começaram a perigar.
Ney — Nossas mães morreram durante essa peça, passamos por muitas coisas juntos.
Nanini — Ficamos até ser possível. Falei com o Ney que tínhamos duas possibilidades. Uma era esperar esfriar o sucesso de Irma Vap, mas isso podia acabar com a gente. Outra era encerrar a peça no auge, com as salas lotadas. Fizemos uma última apresentação no Metropolitan para 4 000 pessoas.
Ney — Era quase um show de rock.
Nanini — Havia muita confusão, briga por ingresso. Já quebraram teatro e até bateram na cara de produtor. Aconteceu uma coisa engraçada no Teatro João Caetano. Eu ficava escondido na bilheteria para ouvir o que as pessoas estavam falando. O público é muito mal-educado! Veio uma mulher perguntar se a Christiane Torloni ainda estava no elenco! Que loucura é essa? Ela nunca esteve!
Ney — Uma vez o Nanini disse, emocionado, que eu tinha uma presença de palco muito forte, porque sempre que entrava em cena as pessoas me aplaudiam. Mal sabia ele que eu chegava mais cedo e ficava na bilheteria dizendo ao público, que vinha em caravanas, que não estava tendo um bom dia, e combinava um sinal para que todos batessem palmas para mim.
O dia em que a peça não aconteceu
Nanini — Tínhamos ido à inauguração do Sambódromo de São Paulo. Claro que bebemos e ficamos sambando até de manhã. Fomos para o hotel e, quando acordei, o produtor estava abrindo as cortinas — uma cena de filme —, dizendo que estávamos atrasados para o espetáculo. Fomos para o teatro e cometi um ato falho. No meio da peça, olhei para o cenário e achei tudo muito estranho. Daí olhei para o meu figurino e comecei a questionar por que estava usando aqueles cachinhos. Que loucura era aquela?! Até que esqueci a deixa. Quando me dei conta, Ney estava apavorado, perguntando: “A senhora não vai me responder?”.
Ney — Se ele não respondesse, não continuaríamos a peça.
Nanini — Ele gritava: “A senhora não vai me responder?”. Eu pensava: meu Deus, o que eu tenho de responder? Gritei: “Fecha o pano!”. Falei para o Ney que não sabia como continuar a peça e ele também esqueceu. Fomos procurar o texto no camarim e voltamos. Abrimos a cortina e eu travei no mesmo ponto.
Ney — Eu insisti. “A senhora realmente não vai me responder?”
Nanini — Voltei a procurar o texto e, quando dei por mim, o Ney estava conversando com a plateia, explicando o que tinha acontecido na noite anterior. Falei: “Tirem o Ney lá da frente!”.
Ney — Acabamos devolvendo os ingressos para as pessoas no estacionamento, ainda com os cachinhos.
A convivência
Ney — Temos, somados, mais de 100 anos de teatro. Sábato Magaldi (crítico e ensaísta) foi meu professor e me falou de um ator que estava fazendo Zoo Story (1978) perto da casa dele. Era Marco Nanini. Um tempo depois, ele escreveu uma matéria sobre “Os jovens senhores do palco”, que seriam Zanoni Ferrite, Antonio Fagundes, José Wilker, Marco Nanini e eu. Decidi ficar de olho nele. Em 1984, fomos chamados para a novela Um Sonho a Mais. Ficamos até 1985, e em 1986 já começamos os ensaios de Irma Vap, quando permanecemos onze anos juntos em cartaz.
Nanini — Ficamos muito íntimos pelo tempo de convivência. Trocamos de roupa na frente um do outro. Quem está ao seu lado no camarim é testemunha das suas fragilidades mais infantis. Para você ter uma ideia, Ney fumava, mas a mãe dele não sabia. Quando ela chegava, ele ficava desesperado! Também trabalhamos juntos em TV Pirata (humorístico da Globo exibido entre 1988 e 1992). Uma vez, exaustos um do outro, decidimos viajar sem contar para onde iríamos. Cada um para um canto. Estava em Nova York, diante do Museu de História Natural. Parei o táxi e quem encontrei na calçada? Isso não é amizade, é uma sentença!
A doença de Ney
Nanini — Você sempre teve sua integridade, seu humor e seu talento, mas aconteceu uma coisa que nos chocou muito: o seu período no hospital. Felizmente estamos aqui hoje, mas eu gostaria de saber como foi para você, artista, acostumado a celebrar a vida, ter passado por essa circunstância.
Ney — Eu morri. Depois do que passei, comecei a ver a importância das coisas pequenas. Tomar banho sozinho, pegar um copo d’água. Perdi os movimentos. Tenho 1,80 metro e 82 quilos, cheguei a pesar 40. Não deixei ninguém me visitar. Hoje, mexer a colher no cafezinho é uma vitória. Pedi ao Edi Botelho, meu grande amigo, que trouxesse uma VEJA, e folheava a revista usando a língua. Agora tudo é uma vitória. Quando estava me recuperando, o Luiz Fernando Carvalho, diretor que nunca olhou para mim, convidou-me para trabalhar, e fizemos o especial Alexandre e Outros Heróis. Na trama, fiz uma cena em que saía da água e gritava: “Mãe, eu voltei!”. Um ano depois estava em Nova York disputando o Emmy. Como a vida é louca!
Nanini — Seus valores mudaram?
Ney — Eu não sabia que era tão amado. Tomei muitas anestesias até descobrirem o que eu tinha, o que demorou muito.
Nanini — É bom, né? Eu adoro tomar anestesia.
Ney — Quando a gente volta da anestesia, existe um código para saber se você está bem. Eu precisava dizer o nome do meu médico, Marcelo. Já sabendo disso, um dia decidi dizer “Alinne”.
Nanini — Por que Alinne?
Ney — Alinne Moraes, adoro ela! Eles ficaram desesperados. (risos)
60 anos
Nanini — Quando fiz 60 anos, encontrei o Galpão Gamboa e comprei um sítio. O Galpão abriu meu horizonte profissional. Conheci artistas, passamos a trabalhar juntos e descobri um novo universo. A natureza também me deu sobrevida, fôlego. Viver é cansativo, né? Chega uma hora em que a gente tem de ir embora. Só queria saber se tem algo interessante depois.
Ney — Por isso você perguntou sobre a época em que fiquei doente! (risos)
Fama
Ney — Houve uma época em que eu estava em todas. Um arroz de festa. Comecei a esquecer minha profissão e virei uma pessoa deslumbrada.
Nanini — Isso tem a ver com fama?
Ney — Fama é passar na rua e as pessoas gritarem: “Olha lá seu Neyla! (risos) Quando caminho na Lagoa, com minhas amigas capivaras, não gosto que me parem para fazer selfie. Tenho um ritmo, depois que parar, tudo bem. Também não gosto que interrompam quando estou comendo. Fora isso, sou atencioso com fãs. Sempre quis ser uma estrela.
Nanini — Fama tem a ver com estrela?
Ney — Meu pai e minha mãe trabalhavam em cassino. Quando os cassinos fecharam, eles ficaram em uma situação muito ruim. Morei com eles em lugares bem humildes e comecei a trabalhar muito cedo para ajudá-los. Era entregador de marmita na Prado Júnior. Estudei muito, fiz vários espetáculos, mas só no dia em que saí na capa da revista Amiga eles reconheceram que eu estava fazendo sucesso.
Nanini — Hoje, o que é a fama para você?
Ney — Nada. Acabou. Claro que gosto de tirar foto, dar entrevista. Quando a pessoa certa me elogia, fico feliz. Hoje passou uma menina de bicicleta por mim e disse: “Grande Ney!”. Fiquei muito feliz.
Nanini — Você não acha que o público é infiel?
Ney — Sim! Não tem memória.
Nanini — Você se preocupa com dinheiro?
Ney — Filho de pobre sofre desse trauma. Pago tudo com antecedência.
Nanini — Tem reservas para o futuro? Tem dinheiro aplicado?
Ney — Tenho, sempre tive essa preocupação.
Nanini — Você é a formiga, né? Eu acho que sou a cigarra!