Quando menos se espera, estampidos interrompem o silêncio da vizinhança. São tiros, mas já não assustam. A violência é tão frequente que virou companhia estranhamente familiar dos moradores do Jacarezinho, favela na Zona Norte. Aos 18 anos, a modelo Raquel Félix acredita ser uma garota de sorte porque uma bala perdida nunca cruzou o seu caminho. “Lá em casa, entregamos a nossa vida a Deus”, diz a jovem, que, quando não está modelando, costuma dar expediente no boteco da avó, um trailer dentro da comunidade. Ela nunca se achou bonita, mas tudo mudou quando, há três anos, foi abordada por um olheiro na região e convidada a participar de uma seletiva da Jacaré Moda, a primeira agência de modelos fincada em uma favela.
Depois das aulas de passarela e expressão corporal, Raquel conquistou grifes como Dress To e Redley, para as quais já fez editoriais e até desfiles, mesmo com seu 1,68 metro. “No começo, eu ganhava metade do que as modelos de grandes agências recebiam, mas dei a cara a tapa e me provei. Não é porque sou da favela que não sei trabalhar direito”, afirma a menina, que sonha também em cursar medicina. “É suado, mas quero mostrar aos jovens da comunidade que eles podem chegar aonde quiserem. E que, mais do que violência e tráfico, existe beleza no morro.”
Atualmente com cinquenta modelos em seu casting, a Jacaré, que nasceu com o objetivo de pôr a favela no mapa da moda, vai virar tema de um documentário produzido pela Espiral, do cineasta Lula Buarque de Hollanda. Apaixonado pelo universo fashion, Julio César Lima, morador do Jacarezinho, lançou o embrião do projeto há mais de uma década. Filho de uma faxineira e de um pedreiro, ele aprendeu tudo o que sabe sobre o tema folheando revistas encontradas no lixo do prédio onde trabalhava como porteiro, em Copacabana. Naquela época, com a ajuda de comerciantes e moradores, começou a organizar concursos de beleza na comunidade, aonde nenhum outro olheiro costumava chegar, por medo da violência. Como prêmio, meninos e meninas já saíam de lá com contrato assinado com grandes agências, entre elas a Way Model. “Existe um tipo específico de beleza na favela que vem da mistura de etnias, mas o favelado está sempre acuado, na defensiva. Ele se marginaliza porque não se vê representado em nada. Meu desejo era empoderar esses jovens através da moda”, afirma Lima.
Há três anos, o negócio foi ampliado, ganhou dois sócios egressos do mercado publicitário e do próprio segmento de moda e se transformou efetivamente em um escritório de agenciamento de talentos. “Moda da resistência” foi o slogan escolhido para inspirar os participantes da empreitada. “Em vez de deixar a indústria ditar padrões, a gente quebra paradigmas e mostra que o belo está na diversidade”, diz o sócio Lucas Rodrigues. Prova de que o discurso não é vazio foi o contato com Matheus Passareli: dono de visual andrógino, o estudante de artes visuais, mais conhecido como Matheusa, foi agenciado pela Jacaré Moda antes de, em abril deste ano, morrer nas mãos de traficantes do Morro do 18, na Zona Norte. Atualmente, as seleções da agência são realizadas não apenas em favelas das Zonas Sul, Oeste e Norte da cidade, mas também em bairros periféricos. A proposta, ousada, vem rendendo frutos como Beatriz Fortunato e Mariane Almeida, beldades que hoje são modelos na Europa. Radicada na França, Beatriz já fez trabalhos para marcas como L’Oréal Paris e Fórmula 1, além de estampar capa e recheio da americana Mode, entre outras revistas.
Pouco a pouco, a agência do Jacarezinho tem mostrado que o Brasil pode ser mais do que os olhos claros e a pele alva de tops como Gisele Bündchen, Alessandra Ambrosio, Adriana Lima e Izabel Goulart. É o que espera a estudante de produção cultural Ana Paula Patrocínio, de 22 anos, 1,80 metro e 55 quilos. “Não existe mulher preta que não tenha sofrido por causa de sua aparência. O primeiro apelido que a gente ganha na escola é beiçuda, macaco ou cabelo de vassoura”, desabafa a moradora de Campo Grande, na Zona Oeste, que em apenas dois meses na Jacaré Moda já acumula trabalhos para marcas cariocas como Farm, Três e Ahlma. “Nunca quis abdicar da minha aparência, e na Jacaré eles não exigem isso. Em experiências anteriores, chegaram a me obrigar a usar peruca, a fim de esconder meu cabelo afro, e aplicaram Photoshop na minha pele, para clarear”, revela. Enquanto isso, seu colega de casting Caio Guimarães, 22 anos, 1,87 metro e 60 quilos, morador de Cosmos, na Zona Oeste, comemora “pequenas vitórias”. Filho de uma dona de casa e de um camelô, ele comprou recentemente, com o cachê de modelo, seu primeiro guarda-roupa. “Adoro marcas como Gucci e Calvin Klein. No shopping, elas são muito caras, então eu garimpo em brechós. Por enquanto”, avisa.