Até mesmo nas histórias em quadrinhos, o Brasil carece de heróis. Desde a década de 40, importamos paladinos dos Estados Unidos. De um lado, Homem-Aranha, X-Men e Os Vingadores, da editora Marvel. De outro, Super-Homem, Batman, Mulher Maravilha e os demais personagens da Liga da Justiça, da DC Comics. Cada um foi o reflexo de seu tempo. Enquanto alguns brigaram contra os efeitos devastadores da Grande Depressão econômica americana, que eclodiu em 1929, outros lutaram na II Guerra Mundial ou participaram da Guerra Fria. “Por aqui temos apenas a Turma da Mônica, do Mauricio de Sousa, que na verdade é voltada ao público infantil”, afirma o publicitário e designer gráfico Luciano Cunha, de 45 anos, que se uniu ao roteirista Gabriel Wainer, 33, herdeiro da distribuidora Downtown Filmes, para criar um universo de heróis de quadrinhos tipicamente brasileiros. “Nosso objetivo é percorrer o mesmo caminho da Marvel, mas com personagens mais reais e, claro, abordando temas do nosso cotidiano”, diz Wainer. “Não queremos um cara de colante verde e amarelo voando por aí com superpoderes”, diverte-se Cunha, que já trabalhou em tirinhas de O Menino Maluquinho, com Ziraldo, quando tinha apenas 16 anos.
Mirando o público nacional de 65 milhões de leitores de revistas de banca, a dupla à frente da Guará Entretenimento levantou 2 milhões de reais para investir no audacioso projeto, que já conta com pelo menos seis justiceiros (veja o quadro abaixo). Um deles, o Santo, vem sendo desenvolvido há alguns meses pelo desenhista mineiro Alisson Borges, colaborador da DC Comics em histórias em quadrinhos como Batman e Jovens Titãs. Trata-se de um médium que luta contra a intolerância religiosa e os mercadores da fé. “Gosto dos personagens da Guará porque eles dão vazão aos nossos demônios internos. São catárticos”, afirma Borges, que tem desenhadas nove páginas da trama (a previsão é de três edições de vinte páginas).
Os heróis Penélope e Os Desviantes também estão em fase de roteirização, mas tudo começou com O Doutrinador, concebido em 2008. Sucesso no mundo geek, a HQ nasceu da indignação com a política brasileira e viralizou nas redes sociais durante as manifestações que tomaram as ruas do país em meados de 2013. Na história, um vigilante mascarado com treinamento militar luta contra a roubalheira e a impunidade no Brasil de forma tortuosa: matando políticos corruptos. Foram três edições — uma delas assinada em parceria com Marcelo Yuka, ex-baterista da banda O Rappa — e mais de 4 000 exemplares vendidos. Deu tão certo que o anti-herói foi parar nas telas: o filme, orçado em 15 milhões de reais, estreia em setembro e, em 2019, a história vai virar série de TV no canal Space, da Warner Bros.
Segundo o cineasta Bruno Wainer, dono da Downtown Filmes, que costuma lançar comédias como Minha Mãe É uma Peça e Loucas para Casar, a Guará Entretenimento é a sua porta de entrada para o mundo pop. “Acredito no potencial desses personagens no cinema porque eles absorvem as questões do mundo atual. Isso é tendência. Observe como a Mulher Maravilha abraçou o empoderamento feminino e como o Pantera Negra defende o orgulho negro”, afirma Wainer, pai de Gabriel. Espécie de Jessica Jones (heroína da Marvel) da trupe tupiniquim, Penélope vai aparecer no filme do Doutrinador como a primeira aposta da empresa de começar a fazer com que seus heróis interajam entre si. Além disso, a Guará trabalhará na expansão de seus personagens para outros universos. O Doutrinador, por exemplo, vai ganhar um joguinho virtual em breve, antes do lançamento do filme. “A gente pensa cada herói como marca. Vamos desenvolver ainda bonecos, jogos de tabuleiro e outros produtos”, diz Gabriel. A julgar pelos 18 bilhões de reais que o mercado de licenciamento movimenta por ano no Brasil, a ideia é promissora.