Responsável pela nova ordem no Morro da Formiga, a capitã Alessandra Veruschka Carvalhaes mal disfarça o contentamento com o serviço, definindo sua rotina na relação com os moradores como “um barato”. Tomado por desconcertante sinceridade, o comerciante que trabalha fornecendo quentinhas deixa escapar uma ponta de saudade do tempo em que traficantes perambulavam pelas ruas. Em outra passagem, o grande responsável por essa história toda, o secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, sonha com a integração: o dia em que as favelas vão ter seus nomes esquecidos e passarão a ser conhecidas como parte dos bairros a que pertencem. Cenas como essas são apenas um aperitivo do documentário 5 X UPP, que será exibido no Festival do Rio, a partir de 6 de outubro. O grande diferencial do filme é o ponto de vista de seus diretores. Rodrigo Felha, 32 anos, Wagner Novais, 28, Cadu Barcellos, 25, e Luciano Vidigal, 31, são moradores de morros cariocas e, através de sua ótica, fazem um balanço da implantação das dezessete Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) na cidade.
O que se vê na tela é o retrato cru da política de segurança implementada nos últimos dois anos e meio ? para o bem e para o mal. Na visão dos jovens cineastas, a chegada da polícia em áreas controladas pelo tráfico de drogas foi um avanço inegável. Eles reconhecem as conquistas proporcionadas pela diminuição dos tiroteios, o acesso a serviços legalizados de energia e TV a cabo e a mudança no tom das conversas. “O morador das favelas não quer mais falar de violência. Quer saber de hospital, escola, trabalho”, conta Wagner Novais. “Quando eu era pequeno e ouvia um tiro, sabia qual era o calibre. Hoje, na Cidade de Deus, tem criança que ainda não ouviu barulho de bala”, acrescenta Felha. O filme mostra também iniciativas auspiciosas de empresas que se instalam naquelas localidades e contratam jovens desempregados devido à queda do tráfico. “Pobre gosta de andar de Nike”, brinca Novais. Na fita, não há espaço, porém, para proselitismo chapa-branca. Há quem reclame da sumária proibição de bailes funk, uma das poucas opções locais de lazer, e muitos travam com o novo poder estabelecido uma queda de braço para legalizar negócios como os de mototáxi e lan house.Os personagens consultados também demonstram, em maior ou menor grau, algum ceticismo, fundado no passado de sofrimento e no presente de sustos. Nas últimas semanas, aquelas áreas sofreram com episódios de corrupção policial e tiroteio, além de balas traçantes riscando o céu no entorno do Alemão, onde, todos sabem, ainda não existe UPP.
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Goste-se ou não de suas conclusões, os realizadores do longa sabem sobre o que estão falando, até porque já viveram muitos dos problemas que abordam. Rodrigo Felha, da Cidade de Deus, foi submetido a uma revista, em tempos de polícia pacificadora. Obrigado a baixar as calças, recusou-se e foi parar na delegacia. Na mesma localidade, ainda garoto, Novais faltava às aulas em função dos inúmeros combates entre traficantes. Morador da Maré, Cadu Barcellos viveu um pesadelo recentemente: quase perdeu o voo para Paris por causa de um tiroteio ? viajou em maio, ao lado dos colegas, para debater o filme. Luciano, do Vidigal, tem um irmão que já deu expediente no tráfico. A passagem de personagens do conflito para a posição de diretores deu-se pelas mãos do cineasta Cacá Diegues, produtor do trabalho. Há cinco anos, Diegues teve a ideia de rodar 5 X Favela ? Agora por Nós Mesmos. Queria atualizar Cinco Vezes Favela, de 1961, dirigido por ele e por outros quatro estreantes (veja o quadro ao lado). Na nova versão, 100 jovens moradores de morros, selecionados em oficinas de cinema, assumiram o roteiro, a direção e o elenco. Entre eles estavam os autores de 5 X UPP. “Não inventei ninguém. Eles já tinham o olhar de que precisávamos”, afirma Diegues.
Com a naturalidade de quem conhece aquele universo, as câmeras do filme passeiam por ruas e vielas de alguns dos morros ocupados: Babilônia, Cabritos, Chapéu Mangueira, Jardim Batan, Providência, Santa Marta e Tabajaras. O cenário que se vislumbra, como era de imaginar, não é nenhum paraíso. Faltam condições mínimas de higiene, educação, saúde e sobra desconfiança em relação ao futuro. Tudo isso é compreensível. Durante mais de três décadas, esses lugares ficaram entregues à própria sorte ? ou melhor, ao domínio nefasto dos traficantes, que, em um acordo tácito com os governantes, controlavam aqueles territórios, impunham suas leis e, em troca, cediam seus votos. Embora não sejam a panaceia da propaganda oficial e tenham muitos problemas, as UPPs foram a melhor resposta possível a uma situação dada como perdida. Defender o recuo nessa guerra seria como abandonar, de repente, o Plano Real e defender a volta da inflação desenfreada. A alternativa é o caos. “Retroceder não faz sentido”, afirma o economista Sérgio Besserman.
A trajetória de Felha, Novais, Barcellos e Vidigal mostra que o mais leve empurrãozinho pode fazer diferença. Mesmo em meio àquele ambiente, eles terminaram o ensino médio, exigência para participar das oficinas de Diegues, cursaram cinema na Escola Darcy Ribeiro e agora seguem firmes na carreira. O primeiro está rodando um projeto que promete dar o que falar: Favela Gay vai abordar o homossexualismo nos morros cariocas. Wagner Novais é um dos diretores de Salgueiro ? O Rio no Cinema, premiado documentário sobre o desfile da escola tijucana no ano passado. Cadu Barcellos e Luciano Vidigal trabalham na série Mais Vezes Favela, com estreia prevista para outubro, no canal Multishow. Ao contrário do vendedor de quentinhas, eles não têm saudade nenhuma do poder dos traficantes.