Quatro colunas pintadas de vermelho sustentam a imponente estrutura de concreto e aço sobre o vão livre de 74 metros. Não por acaso, o edifício é um dos principais cartões-postais da cidade — o.k., na falta de um Pão de Açúcar. Mas o melhor está lá dentro. A ideia quase descabida de um barão da imprensa brasileiro, materializada com o apoio de um imigrante italiano, abriu caminho, há setenta anos, para a formação da coleção de arte europeia mais importante do Hemisfério Sul. O Museu de Arte de São Paulo (Masp) é um orgulho nacional e, como o nome deixa bem claro, fica a 400 quilômetros daqui. É ótima notícia, portanto, a vinda ao Rio de parte relevante do tesouro guardado no belo prédio da Avenida Paulista. A exposição Entre Nós — A Figura Humana no Acervo do Masp ocupa o Centro Cultural Banco do Brasil a partir de quarta (8). Trata-se de uma oportunidade de ouro: a última passagem dos quadros do vizinho por território carioca aconteceu em 1957, em mostra itinerante e mais modesta montada no Museu Nacional de Belas Artes.
A curadoria de Entre Nós oferece abordagens variadas ao visitante. Promove, ao mesmo tempo, um passeio pela história da arte, da cerâmica pré-colombiana a criações contemporâneas brasileiras, uma demonstração da pujança da coleção guardada no museu — na qual sobressaem obras-primas do naipe de Ressurreição de Cristo, óleo sobre madeira pintado pelo mestre renascentista Rafael Sanzio (1483-1520) — e uma aula sobre mudanças na representação da figura humana promovidas através dos tempos. A inestimável tela do pintor italiano dá boa medida do que se encontra no patrimônio transportado pela Via Dutra, rumo ao Rio, dentro de caminhões climatizados. É impossível dimensionar, em moeda corrente, o custo da exposição montada no CCBB. “Seria irreal divulgar preços de seguro e outros números. A maioria das obras tem valor incalculável. Rafael, por exemplo, não existe no mercado para ser comprado”, esclarece Lucas Pessôa, diretor de operações do Masp. Na capital paulista, a reserva técnica, onde são guardadas as preciosidades quando não estão expostas ou viajando pelo mundo, fica no 3º andar do subsolo, protegida por dispositivos de segurança de ponta.
Na montagem que ocupará o 1º andar do movimentado CCBB, no Centro, Rafael vai estar ao alcance do público, de graça, ao lado de obras icônicas da Europa pré-renascentista, a exemplo de Virgem com o Menino Jesus, atribuída a Maestro di San Martino alla Palma, pintor italiano de Florença, do início do século XIV, e Cristo Morto no Sarcófago Como Vir Dolorum, criada por Niccolo di Liberatore entre 1480 e 1500. A seleção de 100 obras inclui outros nomes de peso, a exemplo do flamengo Anthony van Dyck, retratista da corte real de Carlos I da Inglaterra, e do pintor espanhol Francisco Goya y Lucientes, autor do Retrato da Condessa de Casa Flores (1790-1797), no Rio pela primeira vez. Ecos do Iluminismo no Brasil ganham espaço na exposição com dois expoentes da pintura acadêmica nacional do século XIX, Henrique Bernardelli e José Ferraz de Almeida Junior. Há muito mais, como comprova o “dream team” reunido na ala dedicada à arte moderna: Paul Cézanne, Pablo Picasso, Vincent van Gogh, Paul Gauguin e Amedeo Modigliani, além dos brasileiros Anita Malfatti e Candido Portinari.
Tombada desde 1969 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a coleção do Masp tem cerca de 9 000 peças. Entre Nós recorta um panorama amplo, que vai de Cuchimilco, escultura pré-colombiana de uma sacerdotisa dos anos 1000 d.C., a fotografias da rica coleção Pirelli Masp — as imagens, feitas por astros do ramo como Claudia Andujar e Miguel Rio Branco, ganharão uma sala exclusiva. Escolher (e organizar) o que trazer ao Rio foi missão dos curadores Rodrigo Moura e Luciano Migliaccio. “Precisamos compreender a coleção do Masp como algo plural, que lida com os cânones europeus e outras culturas. Dessa amplitude resulta o verdadeiro tesouro que, agora, vai ao encontro de outros públicos”, afirma Moura. Depois da temporada carioca, a mostra segue para Brasília e Belo Horizonte. Denise Mattar, curadora, que esteve à frente do Museu de Arte Moderna entre 1990 e 1997, elogia as opções feitas por Moura e Migliaccio. “Alguns artistas estão presentes com obras que teriam lugar garantido em qualquer retrospectiva feita no mundo. É o caso de A Arlesiana, de Van Gogh, Pobre Pescador, de Gauguin, Busto de Homem (O Atleta), de Picasso, e Retrato de Leopold Zborowski, de Modigliani”, conta.
De fato, as peças do Masp, além de levar cerca de 400 000 visitantes por ano ao prédio da Avenida Paulista, costumam viajar a pedidos. A primeira exposição de obras da instituição paulista trazida ao Rio, em 1957, passou antes pelo Museu L’Orangerie, em Paris, pela Tate Gallery, em Londres, e pelo nova-iorquino Metropolitan. Edgar Degas (1834-1917) carimbou o passaporte mais recentemente. Apenas três museus têm a coleção completa de 73 esculturas do artista francês: o Metropolitan, o Museu D’Orsay, em Paris, e o Masp. O conjunto guardado em São Paulo passou uma temporada no Museum of Fine Arts, de Houston, nos Estados Unidos, e voltou há uma semana, bem a tempo de abrilhantar a coletiva no Rio com doze peças de bronze, a maioria pertencente à conhecida série de bailarinas. “É do nosso maior interesse que a obra circule e se criem novas reflexões sobre o acervo. Assim também abrimos portas para a reciprocidade e podemos pedir em troca uma peça para uma futura exposição”, diz o diretor de operações, Lucas Pessôa.
Nesses tempos de baixa autoestima, alimentada por farto noticiário policial e político, a proeminência do Masp é um alento. O vizinho ilustre integra, desde 2008, o chamado Clube dos 19, reunião dos dezenove museus donos dos acervos mais representativos da arte europeia do século XIX. Nada mau para uma ideia nascida da ambição desmedida de Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello (1892-1968), o Chatô. O lendário empresário paraibano, responsável pela chegada da televisão ao Brasil e criador dos Diários Associados, no seu auge o maior conglomerado de mídia da América Latina, pôs na cabeça que o país precisava de um museu de arte moderna. Para a tarefa de levantar a pinacoteca, convocou o jornalista, crítico de arte e marchand italiano, radicado no Brasil, Pietro Maria Bardi (1900-1999). Entre 1947, o ano da inauguração do Masp, e 1953, a dupla improvável fez diversas viagens à Europa. Em idas e vindas, os dois acumularam histórias folclóricas e preciosas aquisições, beneficiados pela desvalorização do mercado, devastado pouco depois da II Guerra Mundial.
Negociante ousado, para dizer o mínimo, Chateaubriand chantageava ricaços brasileiros, por meio de sua rede de jornais, para financiar a compra de obras. Em outras ocasiões, organizava jantares e, apontando para os convivas, estipulava ao vivo valores exorbitantes de “doação”, em troca de cada prato servido. Um artigo da revista americana Time, publicado em 1954, define Chatô como “senhor Robin Hood”: roubava quadros de Cézanne dos ricos para mostrá-los aos pobres. Em termos de temperamento, Bardi não ficava atrás. No início dos anos 50, para responder a acusações de que exibia obras falsas, o primeiro diretor do Masp — ficaria na função por quase trinta anos — expôs toda a coleção paulista em instituições prestigiadas na Europa, como o francês Louvre e o Palais de Beaux-Arts, na Bélgica. Foi justamente esse tesouro que desembarcou no Rio há seis décadas e ganhou um vernissage prestigiado pelo presidente Juscelino Kubitschek. Agora, com o acervo do museu enriquecido por aquisições posteriores e devidamente consagrado mundo afora, Entre Nós chega à capital fluminense como a maior mostra itinerante da história do Masp. O visitante só não vai encontrar no CCBB os famosos cavaletes de vidro, engenhosos suportes para as obras concebidos pela arquiteta Lina Bo Bardi (1914-1992), autora do projeto da sede na Avenida Paulista, reinstalados no museu paulistano há dois anos e inspiração para a ilustração da capa desta edição de VEJA RIO. Aproveite.