Eleito no mês passado para a Academia Brasileira de Letras, autor do clássico Poema Sujo, Ferreira Gullar também pode ser celebrado por outra faceta de sua obra: no próximo sábado (22), a Graphos: Brasil, galeria no Shopping dos Antiquários, em Copacabana, abre uma exposição com trinta colagens tridimensionais produzidas pelo poeta maranhense. Trata-se da primeira individual do premiado escritor, também reconhecido por seu trabalho como crítico de arte e ele próprio um artista visual diletante. Agora, Gullar se apresenta ao crivo dos especialistas e do público a bordo de obras convidativas ao toque, com folhas que se dobram em curvas sinuosas e avançam em direção ao observador, revelando em uma face cores distintas daquelas da outra. “São peças que fui fazendo para me divertir, conforme a fantasia me levava”, diz o escritor.
A mostra é fruto de um hobby que Gullar vem cultivando com notável afinco desde os anos 80 — ele afirma ter perdido a conta de quantas colagens já produziu, mas as dezenas que se espalham pelas paredes de seu apartamento em Copacabana permitem um vislumbre. À exceção, porém, das imagens que ilustram os livros Zoologia Bizarra (2010), A Menina Cláudia e o Rinoceronte (2013) e Bichos do Lixo (2013), tais criações nunca foram admiradas senão pelos amigos próximos do escritor. Graças à insistência deles, essa amostra de trabalhos é agora apresentada. Do acervo de colagens que ele guarda em casa, foram selecionadas sessenta, que ganharam edições de três exemplares de aço e alumínio — trinta serão exibidas nesta mostra e as demais futuramente, no mesmo lugar. “Havia uma preocupação compreensível com a pouca durabilidade do papel. A versão que foi produzida de metal imita perfeitamente a delicadeza da folha”, afirma Gullar. Cada uma será vendida junto com um livro de luxo, que reúne fotos de todas as obras escolhidas e poemas do autor, por 12 000 reais.
A evolução do trabalho feito pelo imortal da ABL, das colagens às obras tridimensionais, percorreu caminhos imprevistos. Inicialmente, ele produzia apenas obras chapadas: desenhava naturezas-mortas, recortava papéis coloridos e grudava-os por dentro das linhas riscadas. Certo dia, seu gato de estimação (a quem, aliás, ele dedicou o livro infantil de poemas Um Gato Chamado Gatinho) deu um tapa na folha de papel e desarrumou os recortes. O poeta, entretanto, não se avexou: colou-os tal como estavam, provocando um insólito contraste entre a ordem da ilustração e o caos dos picotes. O passo seguinte foi abolir até mesmo o desenho, passando a apenas jogar os recortes para cima sobre uma folha e colá-los na posição aleatória em que caíam. A casualidade também guiou o surgimento de sua primeira colagem em relevo. Noutro dia, enquanto recortava um papel de cor verde, o avesso cinza se revelou, e ele teve a ideia de deixar ambas as faces visíveis ao observador. Proprietário da Graphos: Brasil, onde as colagens de Gullar serão exibidas, Ricardo Duarte diz que chama atenção a ilusória simplicidade das obras. “Elas nos fazem pensar: ‘Por que eu não fiz isso antes?’. Mas as questões por trás dessa facilidade aparente estão na vivência dos movimentos artísticos dos anos 50 e 60.”
Embora a parte mais notável de sua produção artística tenha se concentrado no terreno da poesia, o escritor maranhense sempre teve entrecruzadas em sua trajetória a literatura e as artes plásticas. Nos anos 50, seu pioneirismo na vanguarda da poesia concreta, que incorporava o estímulo visual à escrita, rendeu-lhe um convite para participar da I Exposição Nacional de Arte Concreta, no Masp, em São Paulo. Em 1959, já afastado daquela escola, assinou o Manifesto Neoconcretista junto com artistas como Lygia Clark, Lygia Pape e Amílcar de Castro, integrando exposições coletivas ligadas ao movimento. Mesmo com trabalhos exibidos em diversas coletivas, Gullar não esconde certa apreensão de iniciante. “Fico um pouco encabulado de mostrar essas colagens porque não sou artista plástico. Mas o pessoal gosta tanto delas que até me alivia”, diz. Seu talento, como se vê, vai muito além das palavras.
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