No início do século XX, Paris fervilhava sob o embalo das vanguardas artísticas que demoliam pilares bem estabelecidos quando o jovem Marc Chagall desembarcou por lá, captou clima, luz e tendências e dali em diante percorreu um caminho tão próprio que nunca se pôde alojá-lo em nenhum escaninho. Certa vez, Pablo Picasso disse que, quando Henri Matisse se fosse, Chagall seria o único que realmente entenderia a cor.
O pintor, nascido em Belarus (antes parte do Império Russo, hoje país sob as garras de Putin) e naturalizado francês, dominava com maestria as tintas com as quais traçou um universo fantástico de raros azuis — “Eu sou azul da mesma forma que Rembrandt é marrom”, contrapunha-se ao mestre holandês do século XVII. Pois os cariocas já podem mergulhar em um belo e relevante recorte de seu vasto acervo, exibido no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), na mostra Marc Chagall: Sonho de Amor — um marco, aliás, da volta das grandes exposições à cidade.
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Depois de passar por Itália, Coreia do Sul e China, 179 obras pinçadas em museus e coleções particulares do mundo todo se somam a sete trabalhos egressos de acervos brasileiros, como os do Masp, do Museu de Arte Contemporânea da USP e da Casa Museu Ema Klabin, em São Paulo, para uma temporada de três meses no Rio e passagens previstas por Brasília, Belo Horizonte e São Paulo.
A coleção revela um multifacetado artista. “São obras-primas em diferentes técnicas, entre elas pinturas, aquarelas, litografias e gravuras”, conta a museóloga Cynthia Taboada, que estava morando em Nápoles, viu a exibição e resolveu trazê-la ao Brasil — trabalho de complexa logística que envolveu cerca de 300 pessoas e resultou na grandiosa retrospectiva de Chagall no país.
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Um dos mais célebres nomes da arte do século passado e apreciado nos dias de hoje nos grandes museus que lhe dão parede de destaque, Chagall já foi apontado como o precursor do surrealismo (título que ele refutava) pela mescla de realidade e fantasia que transborda em sua obra, sem compromisso com qualquer regra de perspectiva, dando ao observador a sensação de sonho. Muito de sua vida no povoado de Vitebsk, onde nasceu, em 1887, e de onde saiu, aos 20 anos, brota em suas telas — casinhas, celebrações religiosas, a simplicidade da vida campesina.
Sua família, de origem modesta, era judia do ramo hassídico, que se finca no ortodoxismo. “Os ideais hassídicos de harmonia entre o homem e a natureza permeiam a obra de Chagall em todas as décadas”, aponta a crítica de arte inglesa Jackie Wullschlager, autora de uma portentosa biografia sobre o artista. “Ele se identificava especialmente com as vacas e para ele o peixe tinha ligações simbólicas com seu pai, trabalhador no armazém de arenques”, diz. Não raro, animais tomavam através de seus pincéis uma aura humana.
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Chagall chegou a viver em Berlim, mas foi em Paris que alcançou, ao longo dos anos, a maturidade artística e onde aprendeu técnicas como o guache, empregado em muitas de suas obras — é dele, a propósito, o estonteante teto da Ópera Garnier, que pincelou a convite do presidente Charles de Gaulle. Nos anos 1940, quando os nazistas ocuparam a França durante a II Guerra Mundial, Chagall fugiu para Nova York, que nunca chamou de casa.
Ele e a mulher, Bella Rosenfeld, seu primeiro e grande amor, sonhavam em retornar a Paris — o que ele fez, mas ela não. Bella, inspiração para os quadros que retratam o amor com toda a delicadeza, morreu dias antes do regresso, sem jamais deixar de ser pintada por um enlutado Chagall. Foi um período duro, em que ele até parou de trabalhar e depois adotou uma paleta mais sombria. Na volta do exílio, fixou-se em Saint-Paul-de-Vence, pequeno vilarejo medieval debruçado nas colinas da Côte d’Azur, perto de Nice.
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A mostra que acaba de abrir as portas no Rio tem o mérito de iluminar a intensa trajetória de Chagall — ele atravessou duas guerras mundiais, testemunhou a Revolução Russa e sobreviveu ao nazismo, que o retirou de circulação dos museus. Essa trilha que perpassou a história do século XX foi transportada para sua arte com obras que acompanham sua carreira entre 1922 e 1980, compreendendo quase todo o seu extenso período criativo.
“É um material amplo, capaz de introduzir o visitante de forma profunda na obra do artista”, afirma a curadora espanhola Lola Durán Úcar, responsável pela seleção das peças que aguardavam desde o ano passado para voar ao Rio — a exposição estava prevista para estrear em outubro de 2021, quando o CCBB completou 32 anos, mas a pandemia emperrou o cronograma.
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As obras de Chagall estão divididas em quatro seções de temáticas diferentes, promovendo um passeio completo por seu legado. Origens e Tradições Russas, a primeira, enfatiza a influência do lugar de sua infância e da vida singela que levava em telas como O Vendedor de Gado (1922) e Aldeia Russa (1929), além do raríssimo guache O Avarento que Perdeu Seu Tesouro (1927) — integrante da série de gravuras Fábulas, que criou sob a inspiração das obras do escritor francês La Fontaine, dialogando com a cultura popular.
A seção Mundo Sagrado traz trabalhos relacionados a textos bíblicos, incluindo gravuras coloridas à mão que representam capítulos do Velho Testamento, e ao universo espiritual do artista, entre as quais No Caminho, o Asno Vermelho (1978). Terceira parada, Um Poeta com Asas de Pintor reúne telas ligadas ao regresso de Chagall do exílio nos Estados Unidos, com destaque para a série Derrière Le Miroir (1954-1956), uma aberta homenagem à sua adorada Paris, na qual inclui Torre Eiffel, Pont Neuf e o Louvre.
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Ele, que se casaria outras duas vezes, costumava dizer que “há só uma cor que dá sentido à vida e à arte: a cor do amor”. A última seção da exposição, O Amor Desafia a Força da Gravidade, destaca obras em que o sentimento da paixão e o enlace dos enamorados se expõem cheios de simbolismo. Ali está o quadro O Galo Violeta (1966-1972), considerado pela curadora Lola Durán uma das obras que merecem especial atenção por reunir imagens muito recorrentes em seus trabalhos: Bella, o circo, os animais e as flores, que, quando apareciam junto a um casal, simbolizavam para ele o paraíso.
A escolha do Rio para a largada do tour de tão grandiosa exposição, avaliada em 9 milhões de reais, tem a ver com a ampla área oferecida pelo CCBB carioca e com a visibilidade da cena cultural da cidade. “O Rio é uma caixa de ressonância para o Brasil”, explica a gerente-geral do CCBB, Sueli Voltarelli.
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Montar uma exibição dessa envergadura exige uma “logística de guerra”, como define o experiente especialista em direito da arte Marcílio Franca. Lola Durán Úcar levou dois anos para contactar os donos de todas as obras até juntar o conjunto da mostra. Não se paga aluguel, mas o contrato envolve custos, como o de transporte, e contrapartidas — muitas vezes, alguma melhoria, como a troca de uma moldura ou de um vidro.
Com a exposição já organizada, o parceiro no exterior faz uma análise do local que abrigará a mostra, avaliando condições técnicas, segurança e relevância do espaço — o fato de o CCBB ocupar o 17º lugar entre museus e centros culturais mais visitados no mundo, segundo o ranking do jornal britânico The Art Newspaper, pesou a favor. As peças viajam acondicionadas em caixas especiais e cada coleção vem acompanhada de um courier, que zela pelas obras em todo o percurso, na ida e na volta. Os trabalhos de Chagall vieram da Itália em dois aviões, para minimizar os riscos.
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Até aterrissarem no CCBB, armou-se um minucioso esquema de segurança cercado de cuidados à altura do valor das telas — para se ter ideia, um quadro de Chagall leiloado em 2017, que nem era dos mais famosos, alcançou 28,5 milhões de dólares. “A profissionalização tornou possível ao Brasil entrar no circuito internacional das grandes mostras”, ressalta Ana Helena Curti, diretora da empresa Arte3 e produtora-executiva de importantes mostras. “Desde Rodin, em 1995, nossa primeira grande exposição, todas foram muito bem-sucedidas”.
Para o CCBB, a escolha de um peso-pesado das artes plásticas como Chagall é estratégica. “Um nome desses tem força para atrair muita gente para visitar um centro cultural pela primeira vez”, diz Sueli Voltarelli. Quem fica frente a frente com o lirismo dos trabalhos de Chagall não imagina que sua trajetória tenha sido tão conturbada quanto o próprio século em que viveu. “Ele teve uma vida dificílima e sempre manteve a confiança, uma mensagem de esperança que me parece mais atual do que nunca”, acredita a curadora Lola Durán. Com o mestre das cores, o sonho nunca morre.
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Mostras imersivas reforçam o calendário de exposições no Rio
A bela mostra Marc Chagall: Sonho de Amor inaugura a temporada de exposições que prometem atrair multidões no Rio. Duas exibições imersivas já estão no cronograma, ambas combinando projeções 360 graus e música de primeira para promover uma viagem ao coração da obra de artistas do mais alto quilate. No dia 19, uma tenda montada no Boulevard Olímpico, em parceria com o MAR, recebe Monet à Beira D’Água.
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Em 6 de abril é a vez de Van Gogh e Seus Contemporâneos, vinda de Florença, na Itália, aportar na Casa França-Brasil (atenção: não é a mesma que fez sucesso no Atelier des Lumières, em Paris, em 2019). Para o curador Antonio Curti, estamos vivendo uma transição da era da contemplação para a da experiência. “O público se sente parte da obra, faz questão de postar imagens nas redes e isso acaba contribuindo para a formação de plateia, que é o que a gente quer”, diz. Leia mais na pág. 50.
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