Com seu pungente relato registrado em um diário, a adolescente holandesa Anne Frank lançou luz sobre um ângulo inusitado da perseguição aos judeus durante a II Guerra Mundial. Bem menos famosas, outras meninas e adolescentes também deixaram registros poderosos desse que é um dos mais horripilantes momentos da humanidade. Uma faceta pouco conhecida do pesadelo engendrado pela Alemanha nazista pode ser conferida no Museu Histórico Nacional, em uma exposição batizada como As Meninas do Quarto 28. Trata-se de uma réplica de um dormitório de 18 metros quadrados do campo de concentração de Theresienstadt, na atual República Checa, que abrigou sessenta meninas entre 1942 e 1944, das quais apenas quinze sobreviveram. No quarto, as garotas mantiveram um juramento de amizade e criaram uma espécie de sociedade secreta, com direito a hino, lema e bandeira. Entre as atividades que realizavam em segredo estavam aulas de desenho, o que leva aos demais artefatos expostos: uma coleção de cinquenta ilustrações e colagens que reproduzem originais hoje guardados no Museu Judaico de Praga. Selecionada em 2014 pela Organização das Nações Unidas (ONU) para lembrar as vítimas de Hitler, a mostra chega ao Rio depois de passar por São Paulo, Brasília e Porto Alegre. “Nosso objetivo, além de fazer a história ser lembrada, é criar um contraponto com o presente. Muitas crianças nas favelas, por exemplo, vivem uma realidade de medo e dor muito parecida, e a arte também pode ajudar a transformar a vida delas”, afirma Karen Zolko, curadora da mostra no Brasil.
Formada em arquitetura, a paulistana Karen Zolko conhece de perto o drama das meninas de Theresienstadt. Tal vínculo foi estabelecido em meados da década de 70, em uma viagem com sua mãe, a decoradora Monika Zolko, ao país onde nasceu, a então Checoslováquia. Durante uma visita ao Museu Judaico de Praga, Monika teve um choque ao ver a assinatura em um dos desenhos expostos: Erika Stránská. Tratava-se de sua meia-irmã, nascida do primeiro casamento de seu pai. A menina foi prisioneira de Theresienstadt até ser deportada, pouco antes de completar 14 anos, para morrer em Auschwitz. O episódio foi o ponto de partida para uma longa busca por detalhes sobre os últimos anos de vida da adolescente. Em 2012, com as facilidades da internet, Karen decidiu procurar mais informações sobre a tia e descobriu que, naquele mesmo museu checo, havia não apenas um desenho de Erika, mas trinta deles.
A história das meninas de Theresienstadt ganhou notoriedade com o livro As Meninas do Quarto 28, da jornalista alemã Hannelore Brenner. Na obra, lançada no Brasil com a ajuda de Karen, revela-se que Erika foi uma das moradoras do local. Originalmente designado como um gueto-modelo para judeus que faziam parte da intelectualidade alemã, checa e austríaca, o campo teve entre os prisioneiros pintores, compositores e escritores. Ali, os alemães, em sua lógica perversa, procuravam manter uma fachada para mascarar as atrocidades cometidas em outros campos. Chegaram até a filmar documentários para a propaganda nazista com um playground falso. Mas os números são implacáveis quanto ao horror que se vivia ali dentro: das mais de 15 000 crianças entre 12 e 14 anos levadas para lá, apenas 93 sobreviveram.
Ainda assim, alguns prisioneiros abnegados, como a artista plástica Friedl Dicker Brandeis, dedicaram-se a manter viva a esperança infantil. Formada pela escola de arte Bauhaus, Friedl deu aulas de arte clandestinas a mais de 600 alunos e conseguiu esconder 5 000 trabalhos feitos pela garotada em uma mala, recuperada depois de sua morte, também em Auschwitz. “A presença da professora fazia com que tudo ficasse bem”, disse Hannelore a VEJA RIO. Foi graças a Friedl que os desenhos da exposição chegaram até nossos dias e que Monika Zolko recuperou a história de Erika. “Hoje, ela vive através dessas ilustrações. A mostra ajudou a diminuir a culpa que eu sinto por ter escapado da morte e ela não”, desabafa Monika. Em uma das paredes de sua casa, em São Paulo, a decoradora, hoje octogenária, pendurou o desenho de que mais gosta: um sol sorridente. “Ele passa a mensagem de que devemos ter esperança sempre. Nas pessoas e na vida”, conclui, confiante no poder da arte mesmo nos momentos de terror.