A tensão era evidente na sala de ensaios da Fundação Calouste Gulbenkian, no Centro. Andrucha Waddington, diretor de cinema consagrado, que encarna pela primeira vez o papel de encenador teatral, checava repetidamente o horário, enquanto o empresário de entretenimento Luiz Calainho não tirava os olhos do visor do celular. Um grupo de atores, para passar o tempo, fazia exercícios de aquecimento vocal cantando hits dos anos 80. O convidado especial que todos esperavam estava atrasado. Figura importante — e temida — no meio artístico carioca, ele daria o seu nihil obstat à produção. O motivo para tamanho estresse não era apenas a sua opinião sobre a peça, mas sim sobre a maneira como será retratado — afinal de contas ele é o vilão da trama. Quarenta minutos depois do horário marcado, eis que surge o ex-todo-poderoso da Rede Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, 78 anos de idade. Instalado no melhor lugar da sala, ele assistiu às cenas sem pronunciar uma palavra. Franziu a testa, riu em certos momentos e em outros até deixou escapar uma lágrima furtiva. Ao final, deu seu veredicto ao ator que o representa na produção: “Você não precisa ter esse tom raivoso. Quem mandava como eu não tinha de se alterar para impor autoridade”, disse ele a Saulo Rodrigues, 39 anos. Assim que o chefão se retirou do recinto, todos respiraram aliviados. Chacrinha, o Musical, a versão para os palcos da biografia de um dos maiores ícones da televisão brasileira, havia passado por sua primeira prova de fogo.
O aval de Boni tirou um peso das costas da equipe. Na produção, que estreia no dia 14, no Teatro João Caetano, ele aparece como o chefe despótico que depois de contratar o Velho Guerreiro, em 1967, o demite cinco anos mais tarde. O episódio leva o animador à fase mais difícil de sua vida, da qual só se recupera em 1982, ao voltar para a Globo, novamente a convite do executivo. O alívio faz sentido, pois não era do interesse de ninguém comprar briga com um dos homens mais influentes da indústria de entretenimento do país, ainda mais tendo como pivô uma superprodução de 12 milhões de reais, elenco de 23 atores e um cenário à altura das excentricidades do personagem que retrata — bananas e peitos infláveis gigantes, entre outros. O desafio de encarnar o protagonista cabe a dois atores. Leo Bahia, revelação saída de The Book of Mormon, viverá o jovem Abelardo Barbosa no primeiro ato do espetáculo. É quando o público terá contato com a origem nordestina do apresentador, que chegou a estudar medicina e veio parar no Rio por acaso, a bordo de um navio alemão desviado para cá em decorrência da eclosão da II Guerra Mundial. A segunda etapa, estrelada pelo veterano Stepan Nercessian, tem como pano de fundo o programa Cassino do Chacrinha, que o apresentador comandou até morrer, em 1988, aos 70 anos, vítima de um câncer no pulmão. É nesse trecho que ocorre a apoteose do espetáculo, com as lendárias chacretes, o ajudante de palco Russo, a exótica Elke Maravilha e o troféu abacaxi, oferecido aos aspirantes a cantor. “O público se sentirá no próprio auditório”, aposta a produtora Aniela Jordan.
A montagem reserva novidades mesmo aos fãs habituados às pirotecnias dos musicais. Após o intervalo, o palco ganhará duas arquibancadas com lugares destinados a integrantes da plateia, que poderão optar pela experiência no momento da aquisição do ingresso. E quem quiser poderá arriscar a sorte como calouro entre as atrações do Cassino da ficção. A produção ainda prevê apresentações-surpresa de ídolos que fizeram história no programa, como Elba Ramalho, Fábio Jr. e Ney Matogrosso. Outra preocupação foi tornar a narrativa mais enxuta e ágil. “Desde o início, decidi que o musical não ultrapassaria duas horas. Como espectador, ficava incomodado com algumas montagens arrastadas”, comenta o diretor Andrucha Waddington. E, apesar de ser um espetáculo sobre uma personalidade carismática e muito conhecida, há uma preocupação em ir além da versão edulcorada da realidade e retratar o lado polêmico do apresentador.
Se à frente das câmeras o Velho Guerreiro era um mestre da algazarra e da alegria, nos bastidores revelava uma personalidade complexa. Diagnosticado com psicose maníaco-depressiva — hoje chamada de transtorno bipolar —, tomava um coquetel que juntava lítio, soníferos, antidepressivos e, em dias de gravações e shows, medicamentos contra problemas digestivos. Ele chegava a vestir sete cuecas, uma por cima da outra, com receio de que o intestino o traísse quando estivesse se apresentando ao vivo. A bagunça que fazia no palco, andando caoticamente e entoando os bordões que inventava (veja o quadro), escondia um temperamento perfeccionista e obcecado pelos índices de audiência. Mandava os filhos — Jorge, Nanato e Leleco — acompanhar os levantamentos do Ibope e fazer pesquisas paralelas. Na ânsia de conquistar o público (foi líder absoluto nas tardes de sábado, na Globo), não tinha limites. Hoje seria fatalmente destroçado no Twitter e no Facebook por seu comportamento politicamente incorreto — basta lembrar a marcha carnavalesca Maria Sapatão. Ridicularizava calouros, exibia desdentados e gagos em profusão, afrontando o nascente padrão de qualidade que caracterizaria a Globo. À revelia dos chefões da emissora, organizava concursos estapafúrdios, como os do cachorro mais pulguento, da galinha que punha o ovo mais rapidamente, da mãe com mais filhos ou de anões. Um crítico de televisão certa vez o chamou de “o débil mental do Brasil”. “O Chacrinha quebrou o tom engravatado da TV brasileira num momento em que o veículo seguia padrões rígidos”, diz Pedro Bial, que assina o roteiro com Rodrigo Nogueira.
Longe de ser uma unanimidade, o apresentador foi se transformando em figura de culto e apelo pop no decorrer de sua trajetória. O aval de artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil, que o reverenciavam, ajudou a atenuar a imagem popularesca e com um pé no grotesco entre os intelectuais. Mais do que ninguém, Chacrinha usava a imagem de palhaço-anarquista, sempre com figurinos espalhafatosos, para explorar as potencialidades da comunicação de massa. Sua vida profissional, do sucesso como locutor ao auge na TV, é um manancial de episódios pitorescos. A peça mostra, por exemplo, que o hábito de atirar bacalhau na plateia surgiu com um encalhe do produto na rede de supermercados Casas da Banha, patrocinadora do programa. Fatos marcantes da sua história pessoal também foram transpostos para o palco. Entre eles, o acidente com o filho Nanato, que morreu na semana passada em decorrência de complicações respiratórias e cardiológicas. Ex-marido da cantora Wanderléa, ele ficou tetraplégico nos anos 70 após mergulhar numa piscina. A fase mais conturbada, quando Chacrinha foi demitido da Globo e amargou audiências pífias em outras emissoras, também está no espetáculo. Tudo entremeado com sessenta canções, a maioria sucessos exibidos no seu programa. Mas há detalhes que ficaram de fora, como o expediente pouco ortodoxo com o qual negociava a ida de artistas ao auditório — em troca, eles tinham de participar gratuitamente de shows que o apresentador realizava pelo país. Com 60 anos de idade e 46 de carreira, Stepan Nercessian titubeou antes de aceitar dar vida a uma figura tão complexa. “Quanto mais velho, mais medo. Quanto mais experiente, mais nervoso”, justifica-se, citando uma frase do personagem.
A estreia de Chacrinha, o Musical comprova que o gênero, de fato, caiu no gosto do público. Em termos de número de produções anuais, o Brasil já é o terceiro maior mercado para esse tipo de espetáculo, atrás dos Estados Unidos e da Inglaterra. Cada peça da Aventura Entretenimento, por exemplo, é vista por 200 000 pessoas. A obra sobre o apresentador pernambucano é a 15ª a ser feita pela companhia e a quinta 100% nacional — entre elas uma inspirada no Rock in Rio, outra sobre Elis Regina e uma adaptação do filme Se Eu Fosse Você. Se há pouco tempo era praxe copiar superproduções da Broadway, hoje há uma gama de profissionais brasileiros especializados nesse tipo de industria. E o país começa a exportar suas criações: os direitos da montagem baseada no festival criado por Roberto Medina foram comprados pela Espanha e o musical sobre Elis fará uma turnê pela Europa e pelo Japão. “Queremos fazer produções provocativas, trazer cada vez mais gente que não é da área para dar um olhar diferente e frescor a esse tipo de espetáculo”, ressalta o empresário Calainho. Com seu orçamento milionário e pirotecnias, Chacrinha, o Musical está entre as produções teatrais mais caras já feitas no país. Coisa que o próprio Velho Guerreiro, com seus loucos desvarios, com certeza adoraria.
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