Apaixonado por arte e pintor diletante, o russo Wassily Kandinsky (1866-1944) era um jovem professor de direito na Universidade de Moscou quando, em 1896, uma exposição de obras impressionistas francesas aportou na capital russa, sua cidade natal. Ao visitar a mostra, teve uma epifania. Diante de uma tela de Claude Monet que retratava um monte de feno, demorou a entender o que havia nas pinceladas do francês. “Tive a vaga sensação de que o objeto estava ausente. E notei, com surpresa e confusão, que a pintura não só prendia minha atenção como se imprimia indelevelmente em minha memória”, disse depois. O impacto foi tamanho que o rapaz abandonou a cátedra universitária e partiu para Munique, na Alemanha, para estudar arte. A partir daí, seus trabalhos progressivamente se alinhariam com o efeito desnorteante que ele experimentara diante do quadro de Monet. Assim, as representações de cenas da realidade iam dando lugar a formas indefinidas, cada vez mais distantes de qualquer elemento identificável. Não à toa, seu nome entrou para a história da arte acompanhado da alcunha de “pai do abstracionismo”. É justamente essa ruptura que serve de fio condutor à exposição Kandinsky: Tudo Começa num Ponto, com abertura programada para quarta (28), no CCBB. “Ele se destacou como pioneiro na fuga do realismo e na busca de novas formas de representação. Foi revolucionário”, diz a curadora Evgenia Petrova, diretora do Museu Estatal Russo de São Petersburgo, de onde veio a maior parte das obras.
Com 153 peças, entre pinturas, xilogravuras, ilustrações, documentos, filmes e objetos, a exposição é a primeira individual de Kandinsky realizada no Brasil e a maior já vista na América Latina. Além do Museu de São Petersburgo, sete instituições da Rússia, uma coleção privada do mesmo país e ainda acervos particulares da Alemanha, Áustria, Itália e Estados Unidos cederam trabalhos que formam um conjunto avaliado em 350 milhões de euros, o equivalente a 1 bilhão de reais. “A maior parte deles nunca foi exibida fora da Rússia”, afirma Rodolfo de Athayde, idealizador e diretor-geral da mostra. Antes do Rio, as peças foram vistas no CCBB de Brasília, e depois seguirão para as unidades de Belo Horizonte e São Paulo — ao todo serão onze meses no Brasil. Um negócio dessa extensão só foi logrado graças à imagem da instituição no exterior, fruto em grande medida do êxito das exposições blockbusters que têm atraído milhares de visitantes nos últimos anos (veja a lista no quadro abaixo). Conhecedores talvez sintam a falta de obras da fase final do artista russo, ausentes devido à impossibilidade de fechar acordo com o Centro Pompidou, em Paris, e o Museu Guggenheim, em Nova York, detentores dos trabalhos mais expressivo desse período. À parte tal detalhe, há peças importantes, entre elas cinco exemplares da famosa série Improvisação e o óleo sobre tela No Branco, de 1920. Essa obra, aliás, é a estrela de uma espécie de instalação que será montada na rotunda, na qual, por meio de um equipamento tecnológico, que inclui óculos especiais e fones de ouvido, o visitante terá a sensação de estar literalmente imerso na tela.
Mais do que mergulhar na trajetória individual do artista, a exposição permite compreender o impacto que o abstracionismo causou na arte. Além dos trabalhos produzidos por Kandinsky, fazem parte da exibição desde criações de outros artistas da mesma época até peças de arte popular russa que tanto o encantavam, a exemplo de rocas, cestas, trenós, e artefatos de rituais xamânicos. Tal contextualização possibilita ao público menos familiarizado entender de forma mais ampla o movimento que ele personificou. Afinal, o abstracionismo, como qualquer corrente artística, não surgiu da noite para o dia. Editor de arte da BBC, o inglês Will Gompertz considera que as primeiras experiências nesse sentido podem ser encontradas nas pinturas impressionistas que hipnotizaram o jovem Kandinsky. “Seria possível afirmar que Édouard Manet iniciou tudo isso em meados do século XIX, quando começou a eliminar (abstrair) detalhes em suas pinturas, como O Bebedor de Absinto (1858-59). Cada geração subsequente de artistas eliminou um pouco mais de informação visual, numa tentativa de apreender a luminosidade (impressionismo), acentuar as qualidades da cor (fauvismo) ou olhar para um tema de múltiplos pontos de vista (cubismo)”, escreveu ele no livro Isso É Arte? (Editora Zahar). Costuma-se considerar o surgimento da fotografia um dos principais motivos para essa progressiva abstração. Afinal, se a câmera era capaz de retratar o mundo físico com inigualável grau de fidelidade, o que restaria aos pintores? “A abstração esteve, durante muito tempo, ligada às artes decorativas, como a tecelagem. Naquele momento, começa-se a pensar que ela também poderia ter aplicações como linguagem”, explica Ivair Reinaldim, professor de belas-artes da UFRJ.
A própria obra de Kandinsky não nasce abstrata, como ficará evidente para qualquer um que visite a exposição no CCBB (confira a evolução de sua técnica no quadro das págs. 28 e 29). Suas primeiras criações mostram paisagens, figuras humanas e edificações perfeitamente identificáveis, mesmo quando exibem formas bastante simplificadas — fruto do processo de supressão dos detalhes que levaria o artista à abstração total. No fim da primeira década do século XX, ele dá um passo decisivo nesse sentido, notadamente com a série de trabalhos batizados com o prefixo Improvisação, nome escolhido por sua relação com a música. As possíveis correspondências entre melodias e artes visuais já haviam ficado evidentes para Kandinsky em 1896 (curiosamente, o mesmo ano em que visitou a reveladora mostra de arte impressionista), quando ele assistiu deslumbrado à ópera Lohengrin, de Richard Wagner, no Teatro Bolshoi, em Moscou. “Vi cores diante dos olhos. Linhas desordenadas, quase loucas, traçaram-se diante de mim”, disse. A busca por uma técnica que unisse pintura e som ganhou ainda mais força em 1911, quando conheceu a música atonal do compositor Arnold Schoenberg, de quem se tornou amigo e que tem obras apresentadas na exposição. Naquele ano prolífico, Kandinsky também publicou o livro Do Espiritual na Arte, no qual expôs suas teorias sobre o abstracionismo, e criou o próprio grupo, Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul). Para ele, o azul era a cor da espiritualidade — quanto mais escuro, mais despertava o desejo de eternidade. Desde então, o artista mergulhou cada vez mais na abstração, que dominaria seus trabalhos até a morte, em 1944, na França, onde se radicou nos anos 30. Se em Improvisação 4 (1909) ainda é possível, no meio de uma massa aparentemente disforme, identificar uma árvore azul sobre um campo vermelho, em Improvisação 34 (1913) nada parece fazer referência ao mundo real. Mesmo assim é inegável o fascínio que a tela exerce sobre o observador. “Kandinsky promoveu uma desconstrução de uma herança artística. A partir de formas simples e elementos primários, ele criou as condições de libertação da representação realista. E ainda fundamentou isso com uma obra teórica. Não à toa ele é uma referência”, diz Rodolfo de Athayde. É justamente essa genialidade que os 300 000 visitantes esperados pelo CCBB do Rio poderão conferir de perto.