O ano era 1929. Na revista Souza Cruz, um anúncio da companhia de navios de viagem Blue Star Line alardeava a qualidade dos serviços da empresa. “Exclusivamente primeira classe”, berravam as primeiras linhas do reclame, para, logo em seguida, complementar: “Não transporta immigrantes“, como mandavam a ortografia e o preconceito da época. Quase 90 anos depois, o elitismo xenófobo ainda cativa uma mente ou outra menos atualizada, como deixou claro o caso do imigrante sírio hostilizado em Copacabana em agosto do ano passado. Mas, em geral, a discriminação está cada vez mais fora de moda. Tendo a discussão sobre diversidade como foco central, a revista Souza Cruz ganha na próxima terça (24) um número especial e único, com lançamento no Museu de Arte do Rio. Com contribuições de grandes nomes da cena intelectual contemporânea, o título volta a circular para comemorar os 115 anos da companhia de cigarros que o batiza e estará disponível ao grande público pela internet. “Quero que as pessoas leiam e fiquem balançadas, que ninguém passe batido”, afirma Marcio Debellian, editor da nova edição. Mais do que um retorno em grande estilo, a novidade promete ser um convite à reflexão.
As belas capas, a linguagem rebuscada e o elenco estrelado foram algumas das marcas da revista Souza Cruz em sua fase original. Com o ar aristocrático típico da época, suas páginas traziam obras exclusivas de Di Cavalcanti, Cecília Meirelles, Manuel Bandeira e Portinari entre os anúncios de Fortificante Iodoloino, Sabonetes Rosan e Olivan e Máquinas de Escrever Remington. Segundo Marcio, Lima Barreto era quase um colaborador fixo e, num de seus textos, desanca o carnaval carioca do começo do século XX. Já a nova edição vem completamente repaginada. No lugar do almanaque de comportamento e cultura, surge uma reunião de conteúdo em sintonia com assuntos em discussão nos dias de hoje. Nas 68 páginas, 11 colaboradores brasileiros e estrangeiros discutem feminismo, racismo e outros temas atualíssimos. Há, por exemplo, uma crônica sobre refugiados e uma reportagem sobre a questão do gênero, que Liniker e outros nomes trouxeram para o centro da nova MPB. Entrevistas com Grace Passô, diretora da peça Preto, e Antônio Cícero, recém-eleito para Academia Brasileira de Letras reforçam a conexão com os novos tempos. “Como a revista nunca tinha publicado um texto de uma autora negra, convidamos a Ana Maria Gonçalves para escrever sobre isso”, comenta Debellian. Ana é autora do romance Um defeito de cor, que conquistou em 2007 o Prêmio Casa de las Américas na categoria literatura brasileira, em um exemplo do nível do time convocado para participar da empreitada.
Fundada em 1916 pelo português Albino Souza Cruz, a revista que leva seu nome circulou até 1935 e era vendida por assinatura. Pouco se sabe sobre o projeto que, ao que tudo indica, fazia parte de um esforço pessoal de Albino, que foi mecenas do Real Gabinete Português de Leitura na década de 1920. A redescoberta do título por Debellian se deu em 2011, durante pesquisas suas para uma antologia. Após buscas na internet e em acervos como a Biblioteca da Associação Brasileira de Imprensa, ele conseguiu reunir 198 dos 211 números da revista, que ganharam uma primeira reedição em 2014. Nela, o material foi organizado em fascículos temáticos sobre literatura, crônicas, poesia, assuntos femininos e um que reunia capas da publicação. O conteúdo está disponível na internet. Na versão a ser lançada na próxima semana, a nova edição virá acompanhada de uma reprodução fac-símile do nº 1. “Da Paraíba ao Rio Grande do Sul, 10 mil funcionários da Souza Cruz vão receber este presente”, comemora o editor. Como os navios da Blue Star Line, as ideias da revista Souza Cruz vão passear não só pelo espaço como pelo tempo, na forma de um retrato desses conturbados e interessantes primeiros dias do século XXI.