Segundo de cinco irmãos e fã do lateral-direito Daniel Alves, o haitiano Pierre Frandy sempre quis ser jogador profissional. Em 2014, no seu país natal, percorreu 30 quilômetros, a pé, para fazer um teste na Academia de Futebol Pérolas Negras, conduzida pela ONG Viva Rio, na capital, Porto Príncipe. Fundado em 2011, após o terremoto que devastou o Haiti e deixou mais de 240 000 mortos no ano anterior, o complexo na capital caribenha ajuda a formar jovens e resgatar sua autoestima por meio do esporte. O projeto social oferece treinamento físico e tático, alimentação equilibrada e estudo formal. Hoje, o jogador, de 18 anos, está mais próximo de seu sonho: ele é uma das estrelas do time composto de refugiados haitianos que treina há um ano na sede brasileira da empreitada, em Paty do Alferes, município da serra fluminense a 120 quilômetros do Rio.
A rotina de Frandy e de outros quarenta atletas do Pérolas Negras no Brasil inclui até dois treinos por dia e amistosos com alguns clubes do estado. Nos intervalos, eles trocam a bola pelo caderno. Têm aulas de português, geografia, cultura geral, informática e preparação para a entrada no ensino formal. Na cidade, mais conhecida até então por sua tradicional Festa do Tomate, os meninos já são atração local. “Todo mundo quer falar com a gente. Nunca sofri nenhum tipo de preconceito, são todos bastante receptivos”, conta St. Nosier Badio Stanley, de 17 anos, que arrumou até uma namorada por lá. “Aqui, temos muito mais oportunidades, recebemos todo o apoio para nos tornarmos profissionais”, completa o volante Anel Jean Louis, vascaíno. Na sua família, todos torcem pelo Brasil e estão felizes por Anel estar treinando aqui. Mas seu objetivo é absorver o máximo de experiência para poder voltar e defender seu país no esporte. “Vocês ainda vão me ver jogar na Copa pelo Haiti”, promete. A relação próxima com os parentes, aliás, é um ponto em comum entre os jovens. “Eles mantêm contato diário com os familiares pelas redes sociais e mandam o dinheiro que conseguem juntar para os pais, irmãos e avós”, conta a educadora Paula Mello.
Frandy, Badio e Anel fazem parte da primeira geração de atletas formados no Haiti e selecionados para integrar uma equipe sub-20 no Brasil. Eles estiveram pela segunda vez na Copa São Paulo de Futebol Júnior, no início do ano. Apesar da eliminação, com duas derrotas e uma vitória inédita, boas atuações despertaram o interesse dos clubes: dois jogadores foram contratados pelo Goiás, um pelo Resende e outros dois estão em período de observação no Grêmio. Com o sucesso do trabalho, o Haiti confiou ao projeto a preparação de sua seleção sub-17, que chegou ao Rio há quatro meses e em abril vai tentar no Panamá a classificação para o Mundial, que será realizado na Índia, em outubro. Nas próximas semanas, também começa a ser montada a equipe profissional do Pérolas, que será abastecida com alguns jogadores da sub-20. Com o desfalque dos cinco que já treinam em outras equipes, os times terão atletas brasileiros. Marcos Badday, gerente de futebol do clube, aposta nessa integração para ajudar a remodelar as categorias de base no Brasil: “O haitiano cresce jogando na rua, descalço, com bola de meia, e vai desenvolvendo habilidades. É um futebol moleque, que o Brasil não tem mais, e que dá saudade. Hoje, qualquer garoto aqui vai para uma escolinha, com professor e gramado sintético, o que imita uma formação europeizada. Esse casamento de estilos só tem a acrescentar ao nosso futebol.”
Dirigido pelo técnico Rafael Novaes, que passou quatro anos trabalhando na sede de Porto Príncipe, o clube teve outra conquista inédita em setembro: a filiação à Federação de Futebol do Rio (Ferj), que assinou um termo que permite que os atletas refugiados fiquem fora da cota de estrangeiros (atualmente limitada a cinco jogadores por clube) em suas competições. Com isso, o Pérolas disputará pela primeira vez a terceira divisão do campeonato carioca, que começa em julho, com as equipes sub-20 e profissional. A iniciativa deve ser ratificada pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e segue os passos da política de integração adotada pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) na Rio 2016, com a legitimação de uma delegação de refugiados. “Com a regra que limita o número de estrangeiros, os clubes não arriscam e investem apenas em jogadores argentinos, colombianos, com tradição no futebol. Agora esses meninos terão a chance de fazer história”, acredita Badday. O objetivo da Viva Rio é fazer com que a Fifa também abrace a ideia testada (e aprovada) na Olimpíada do Rio e monte uma seleção mundial que possa acolher refugiados de outros países em zonas de conflito, como a Síria, com potencial de reproduzir o bem-sucedido modelo implementado no Haiti.