Dentre as artes valorizadas e recicladas pelas circunstâncias da pandemia, a música revela-se uma das principais. Capaz de transmitir e intensificar sentimentos, tem sido uma grande aliada para encontrar maneiras de se recompor perante a crise global. Uma pesquisa realizada pela plataforma de streaming Deezer, com 11 000 entrevistados de diversos países, apontou que 30% deles ouvem música para combater a solidão imposta pelo isolamento social.
Enquanto ouvintes exploram as canções como auxílio na quarentena, músicos descobrem maneiras reinventar a profissão e continuar produzindo. Thiago Massimino, integrante da banda Double Face, ao lado do irmão Diego, conta que, no início do isolamento social, utilizaram o “poder de recriação com a ideia de fazer shows no próprio condomínio”. Além de entreter os vizinhos, eles buscavam arrecadar alimentos para doar aos mais prejudicados com a pandemia. Assim criaram o projeto “Alimente com música”.
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Thiago lembra que, quando decretada a quarentena, ele e seu irmão ficaram “bastante assustados”, pois estavam numa escala crescente de trabalhos. Com músicas tocando nas rádios, clipe na TV e agenda de shows, precisaram de “um tempo para perceber que nada daquilo seria possível durante um determinado período”. Aí veio a ideia de fazer um show no condomínio.
Os vizinhos apoiaram a iniciativa num grupo de WhatsApp, e as apresentações deslancharam no compasso da solidariedade. Quase trinta shows arrecadaram seis toneladas de alimentos. Thiago comemora a capacidade de recriação aguçada com a pandemia:
“Acredito que sempre devemos olhar para tudo o que acontece de maneira positiva. Os pontos negativos são apenas obstáculos que temos que vencer. Vimos que podíamos nos manter acesos em relação à música, levar entretenimento para algumas pessoas e arrecadar alimentos para os mais necessitados.”
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Apesar deste sucesso, o músico relata que a quarentena encurtou a receita, prejudicada pelo cancelamento de shows, e frustrou o plano de impulsionar a carreira em 2020. Por outro lado, Thiago reitera que se reinventar e continuar trabalhando, mesmo de forma voluntária, foi importante para que “seguissem em frente e, principalmente, ajudar em um momento tão delicado.”
Os shows acompanhados pelas janelas eram acolhidos com exclamações como “Você salvou meu dia!” e “Vocês fizeram o meu aniversário mais feliz!”. Esses “sentimentos bons”, diz Thiago, jamais serão esquecidos.
A música também teve grande importância para vestibulandos. Maria Eduarda Alvim, de 18 anos, conta que as experiências musicais na pandemia foram fundamentais para ela superar preocupações com o vestibular e problemas pessoais acentuados na crise sanitária. Com o auxílio da música, a estudante superou, angústias, inquietações e os pensamentos de desânimo e de desistência:
“Posso dizer que foi um refúgio ter a música durante esse isolamento. As letras podem sempre ajudar em qualquer situação e a melodia, de um jeito ou de outro, ajuda a acalmar. Eu amo música, não sei se aguentaria um dia sem.”
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O músico e psicólogo Luiz Palizza explica que a música é um potente canal expressivo de sentimentos e afetos em conexão com a coletividade. Quando “integrada à interioridade do sujeito”, torna-se uma ferramenta de transformação. De acordo com o especialista, a música também pode ser usada como uma espécie de anestésico para a angústia. Mas ele prefere o uso “reflexivo, expressivo e afetivo”, que contribui para a liberação de hormônios importantes ao bem-estar, como a dopamina e a oxitocina.
As propriedades relaxantes contrastam, porém, com a aflição vivenciada por músicos autônomos cuja renda, sustentada por aulas particulares e shows em bares, despencou na pandemia. Estudante de Licenciatura de Música na Unirio, Lucas Rodrigues, de 22 anos, recorda que a perda dos alunos no início da quarentena foi a sua maior preocupação. A angústia inicial deu lugar, contudo, à animação com novas frentes de trabalho abertas com aulas e apresentações digitais:
“Muitos músicos aprenderam a dar aulas online, filmar a si mesmos com uma boa qualidade, produzir vídeo, gravar o próprio som, regular, mixar. A capacidade do músico de se reinventar e de empreender cresceu de forma exponencial”, observa.
Segundo dados do Youtube, a procura por conteúdos ao vivo cresceu 4.900% no Brasil durante a pandemia. De acordo com a consultoria americana Tubular Labs, especializada no segmento de vídeos na internet, o crescimento de transmissões ao vivo pelo Youtube no fim de março do ano passado, fase inicial da quarentema, foi de 19%. Isso corresponde a uma média de quase 3,5 bilhões de minutos de conteúdo por dia.
A ciência explica por que buscamos sistematicamente a música para reequilibrar a realidade. A cantora, compositora e PhD em neurociência Julie Wein ressalta que temos uma ligação intrínseca com a música, desde o nascimento. As primeiras coisas que o sistema auditivo entende são as melodias. Além disso, Julie especialista destaca o poder musical sobre as emoções, “porque o processamento cerebral envolve a interação de outros sentidos, como a visão e a audição”.
Julie acrescenta que a música pode atuar de forma positiva nesse período de distanciamento, aflorando sensações como alegria, serenidade, nostalgia e até tensão – assim como um amigo. Ela afirma também que a experiência musical é capaz de contribuir para a liberação hormônios que ajudam a regular algumas funções vitais do corpo:
“Os estudos sobre neurociência nos últimos 20 anos vêm mostrando que a música pode ativar esse circuito. A atividade de uma região específica desse circuito, chamada nucleus accumbens, é capaz de prever o nível de prazer evocado por determinada música em uma pessoa. Essa relação está diretamente ligada à liberação de hormônios do prazer. Além disso, a música pode atuar de forma benéfica sobre a pressão sanguínea e batimento cardíaco, entre outras reações fisiológicas positivas”.
A música revela-se uma potente aliada da saúde mental. O musicoterapeuta clínico Rodrigo Félix recorre ao conceito do musicólogo Victor Zukerquendle para enfatizar a influência “biopsicosocioespiritual”:
“Somos homomúsicos, ou seja, a música está dentro dos nossos arquétipos. Ela é um fenômeno humano, nos influenciando psicologicamente, fisiologicamente e espiritualmente. Somos seres musicais, daí a predisposição natural que temos para fazer música e sermos tocados por ela.”, argumenta.
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Nem sempre as músicas lentas e instrumentais são as mais indicadas para acalmar, aliviar o estresse acentuado por privações e incertezas como as decorrentes da pandemia. O psicólogo Luiz Palizza explica que cada pessoa reage de forma específica a estímulos musicais, a partir de gostos e referências particulares. Se um estilo traz serenidade para uma pessoa, ele pode desencadear emoções opostas noutra. De qualquer forma, Palizza reforça a tese, testada ao longo dos últimos 12 meses, de que a música nos reinventa profissional e socialmente.
Anna Luiza Barreto, Bruna Abinara, Jeane Moraes, Renata Marins e Vitória Lemos*, estudantes de comunicação, sob supervisão dos professores da universidade e revisão final de VEJA RIO