Bruno Herkenhoff (médico): “Vemos pacientes permanentemente deformados”
Cirurgião plástico fala sobre a possível habilitação de dentistas para cirurgias mais complexas, como rinoplastia

Seis anos depois de receber a liberação para fazer harmonização orofacial em consultório, com uso de botox e ácido hialurônico, os dentistas agora serão habilitados para alguns tipos de cirurgia plástica no rosto.
Uma das mais esperadas é a rinoplastia, que modifica a forma, tamanho ou as estruturas do nariz, o quarto procedimento mais procurado no país, segundo dados da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica. Também pode entrar na jogada o lifting facial, para suavizar sinais do envelhecimento; a alectomia, que afina o nariz; a otoplastia, para correção das orelhas de abano; a blefaroplastia, que levanta a pálpebra e reduz bolsas de gordura nos olhos; e a queiloplastia, que altera o formato e volume dos lábios.
A medida está em fase final de formulação; o Conselho Federal de Odontologia (CFO) tem apoio de várias entidades. De acordo com o presidente do CFO, Cláudio Miyake, a liberação vai acontecer de forma gradual a partir de uma habilitação específica. O número de dentistas especializados em harmonização orofacial aumentou de 908, em 2021, para 2.675, em 2023, chegando a mais de 4.000 no fim do ano passado.
Do outro lado, estão médicos que, através dos presidentes das Associação Brasileira de Cirurgia da Restauração Capilar (ABCRC), Sociedade Brasileira de Cirurgia Dermatológica (SBCD), Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) e Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), escreveram uma carta a José Hiran da Silva Gallo, presidente do CFM, dizendo, entre outras, que “essa manifestação inusitada caiu como uma bomba sobre a comunidade, constituída por médicos especialistas. A comunidade médica se encontra extremamente sobressaltada, pois diariamente, em seus serviços médicos, recebem pacientes com graves complicações e sequelas, provenientes de tratamentos estéticos faciais inadequados e ilegais, perpetrados por cirurgiões-dentistas, que não detêm conhecimento científico nem habilitação para praticar tais procedimentos medicos”.
No entanto, a Justiça tem sido favorável aos dentistas, reafirmando sua competência para atuar nesses procedimentos.
A coluna conversou com Bruno Herkenhoff, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica-RJ, cirurgião geral, plástico e especialista em cirurgia estética e reparadora, sobre algumas possíveis implicações e os motivos da relutância.
1. Qual é a sua opinião sobre a permissão a dentistas?
Como presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica do Rio, estou de acordo com a posição da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) nacional, que está preocupada. A formação em cirurgia plástica é extensa e rigorosa, exigindo seis anos de graduação em Medicina, seguidos por três anos de residência em Cirurgia Geral e mais três anos de residência em Cirurgia Plástica, totalizando 12 anos de educação especializada. A cirurgia plástica feita por profissionais sem essa formação médica completa pode representar um risco à saúde, especialmente porque muitas pessoas não sabem diferenciar a competência legal de cada profissional, o que pode levar a um aumento de complicações pelos procedimentos inadequados e ilegais. Estamos diante de um risco real à saúde da população. Existe uma banalização dos procedimentos estéticos e os riscos associados à realização de cirurgias plásticas e tratamentos cosmiátricos sem a devida qualificação profissional e em locais tecnicamente inapropriados. O Brasil é o número 1 em cirurgias plásticas do mundo e o segundo em procedimentos estéticos não cirúrgicos.
2. Embora existam profissionais qualificados, você acredita que cada um deve atuar dentro de sua especialidade?
As cirurgias faciais exigem conhecimentos aprofundados em anatomia, fisiologia e manejo de complicações sistêmicas. Os pacientes recorrem a esses procedimentos, contando que vai dar tudo certo; na maioria das vezes, realmente dá. Mas, e diante de uma complicação? O que o profissional responsável vai fazer? Chamar um médico? Entidades da área afirmam que recebem diariamente casos de pacientes com sequelas graves de intervenções feitas por não médicos.
3. Como os pacientes podem se prevenir?
A ampliação de permissões para cirurgias plásticas por profissionais não médicos pode aumentar a oferta de procedimentos por pessoas sem qualificação. Nós, que exercemos lideranças em sociedades médicas, temos que zelar pela qualidade da nossa própria classe. Em outras palavras, até quem tem formação adequada para atuar na cirurgia plástica precisa estar constantemente se atualizando e se aprimorando para oferecer o melhor e o mais seguro. Agora, imagine quem não tem a formação? Quem se forma por cursos rápidos, rasos, insuficientes… Existe um ponto que precisa ficar bem claro: a cirurgia plástica é uma cirurgia como outra qualquer. E, como toda cirurgia, ela tem seus riscos; por isso, o paciente precisa passar por avaliação médica e fazer uma série de exames pré-operatórios. Só então podemos concluir se ele está apto ou não a operar. É obrigatório que o procedimento seja realizado em espaços equipados com centro cirúrgico e UTI. Isso é o mínimo. As dicas que eu sempre dou: não confiar na Internet, porque fotos podem ser manipuladas e vídeos, editados; escolher especialistas por indicação de pessoas que já operaram. A partir daí, é importante verificar a especialidade do médico na Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica — isso garante que o cirurgião teve uma formação adequada. O terceiro passo é conferir se o serviço onde a cirurgia será realizada está em dia com o alvará de funcionamento. Se possível, visitar a clínica ou hospital e conferir a infraestrutura, suporte para emergências (UTI) etc. Desconfie sempre de promessas milagrosas ou preços muito abaixo do mercado.
4. Em seu consultório, quais têm sido os principais pedidos e queixas nos últimos anos, tanto de mulheres quanto de homens? Há pedidos inusitados?
A tendência atual são procedimentos que deixam a aparência mais natural: seios menores, muitas vezes, sem silicone; procedimentos leves, que valorizam os traços individuais. Mas ainda é bem comum pacientes chegarem com a expectativa de se parecer com alguém. Isso acontece muito com a rinoplastia, por exemplo. Outra realidade comum é a influência dos filtros de Internet na maneira como a pessoa se enxerga. Ela quer aquela aparência inalcançável e, muitas vezes, deposita expectativas irrealistas na cirurgia plástica ou nos procedimentos estéticos. O que costumamos fazer é alinhar essas expectativas; no caso do nariz, muitas vezes a referência não se enquadra em suas proporções faciais. No caso dos filtros, eles oferecem uma textura de pele que não existe no mundo real. É necessária muita conversa.
5. Houve um aumento na procura por cirurgias íntimas masculinas?
A cirurgia de aumento peniano se desenvolveu muito nos últimos anos, e técnicas mais modernas trazem melhores resultados. E melhores resultados desencadeiam o aumento da procura. É crucial, contudo, que os pacientes sejam devidamente informados sobre os riscos, benefícios e limitações desses procedimentos. A decisão deve ser tomada de forma consciente e realista.
6. E o número de adolescentes e jovens buscando procedimentos?
Muitos. É responsabilidade do cirurgião avaliar cuidadosamente cada caso, considerando a maturidade física e emocional do paciente e orientar sobre as reais indicações e expectativas dos procedimentos, evitando intervenções desnecessárias ou motivadas por tendências passageiras.
7. Já precisou corrigir cirurgias de outros profissionais?
No submundo da estética, vemos pacientes permanentemente deformados pelo uso de substâncias, como o silicone industrial, apenas para citar um exemplo. A correção cirúrgica é bastante frequente, especialmente hoje, com a quantidade de médicos que fazem grande sucesso na Internet, mas não necessariamente dispõem da perícia necessária para cirurgias mais complexas. A rinoplastia, por exemplo, é considerada uma cirurgia difícil — eu já fiz cirurgias secundárias e terciárias de nariz numa frequência bem maior do que considero ideal. Estamos falando aqui de narizes operados, reoperados e que ainda assim não ficam bons. E aí se tornam procedimentos cada vez mais complexos, com riscos bem maiores.
8. Já negou a operar?
É dever ético do cirurgião orientar o paciente quando não há indicação para a cirurgia desejada. Já recusei procedimentos em pacientes que buscavam mudanças desnecessárias ou motivadas por questões psicológicas. Essa necessidade de repetidas intervenções pode, inclusive, caracterizar um transtorno chamado Transtorno Dismórfico Corporal (TDC).
9. E esses exageros, por exemplo, lábios excessivamente volumosos e harmonizações faciais padronizadas, vão continuar?
As tendências apontam para procedimentos menos invasivos, com recuperação mais rápida e resultados naturais. Exageros estéticos, como lábios excessivamente volumosos e harmonizações padronizadas têm levado pacientes a buscar reversão desses procedimentos. Acredito que haverá uma valorização crescente da seguinte ideia: não se trata de não envelhecer, mas sim de envelhecer bem. Quando a busca por mudanças ultrapassa o campo do aprimoramento, daí entra no território da insatisfação patológica. Como cirurgião plástico, meu dever não é apenas fazer procedimentos, mas orientar o paciente sobre expectativas realistas e sobre o que é saudável – tanto fisica quanto emocionalmente. Há casos em que a cirurgia simplesmente não é a resposta. Nosso maior compromisso deve ser o de estimular uma relação saudável entre o paciente e sua própria imagem.
10 – O que sugere para uma pessoa encontrar o equilíbrio?
O primeiro passo é entender que a cirurgia plástica deve ser uma ferramenta de bem-estar, e não uma fuga de inseguranças profundas. Um bom profissional avalia não só a indicação técnica, mas também o impacto daquele procedimento em sua vida. Às vezes, um procedimento estético é realmente transformador. Uma pessoa que eleva sua autoestima tem mais ânimo, por exemplo, para mudar de emprego ou terminar um casamento mal-sucedido. Quando a gente gosta mais de si, a gente gosta mais da vida. E esse é o maior sentido do nosso trabalho, pois somos, sobretudo, médicos que lidam com seres humanos. Claro que tem um outro lado: um certo “vício” em se sentir cada vez melhor, do lado do paciente, e uma certa permissividade, por parte do médico, que, em vez de enxergar o desequilíbrio, pode acabar enxergando uma oportunidade de lucro. Medicina não é comércio. E nosso maior bem é a saúde, seja física, seja mental. Se a saúde estiver em primeiro lugar, por parte de quem opera e por parte de quem é operado, o equilíbrio, a harmonia e o respeito à individualidade provavelmente também estarão em primeiro lugar.