O imponente imóvel encravado na esquina da Vieira Souto com a Rainha Elizabeth, em Ipanema, já foi palco de muitos chopes no pós-praia para diversas gerações de cariocas. Ali funcionou, durante quatro décadas, o Barril 1800, sucedido em 2010 por outro refúgio etílico, o bar Astor, que fincou bandeira no privilegiado ponto à beira-mar por mais dez anos. Quem passa hoje por lá vê tudo calmo, um marasmo que contrasta com a alta badalação do passado. Mas que ninguém se engane: por trás da fachada, bartenders e cozinheiros fazem os últimos ajustes para abrir as portas da segunda filial do Boteco Boa Praça em solo carioca, prevista para entrar em plena atividade no fim de maio.
Trata-se da 19ª operação do grupo paulistano Alife, que também vai levar a marca até agosto para a Barra, em meio ao bochicho da Olegário Maciel, numa dupla investida orçada em cerca de 8 milhões de reais. “Desde que abrimos no Leblon, ficou claro que precisávamos expandir”, diz o sócio Flavio Sarahyba, que frisa: “O Rio atrai gente do mundo todo e, apesar das dificuldades, oferece uma série de oportunidades”. Ele não é o único a pensar assim, felizmente para a cidade. Uma turma apaixonada por essas praias e pela arte de beber e comer bem vem liderando com otimismo um movimento de retomada da gastronomia carioca — e apetitosas inaugurações resultarão daí no futuro próximo.
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Poucos cenários são tão desafiadores para um negócio como a situação pandêmica, com todas as incertezas que ela embute. Desde o início da crise sanitária até fevereiro deste ano, o setor gastronômico registrou baixa de 20 000 empregos diretos no Rio, sendo que aproximadamente 3 000 estabelecimentos foram varridos do mapa, um terço do total.
Para quem resistiu, a vida também anda dura: os recentes e necessários decretos que restringem capacidade e horário de funcionamento, a fim de conter o avanço da Covid-19, representam mais um baque no caixa. Mas, de algum modo e como costuma ocorrer, a crise também descortinou caminhos para resilientes empreendedores. “Com muitos imóveis disponíveis, o preço do metro quadrado em áreas nobres despencou, e assim abriu-se a chance de se posicionar bem na baixa para colher na alta”, avalia Fernando Blower, presidente do Sindicato de Bares e Restaurantes (SindRio).
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Experiente no ramo, Alexandre Accioly injetou em torno de 4 milhões de reais em obras e reformas de dois endereços de cozinha italiana, no mesmo ponto onde funcionava o Gero da Barra, do qual era sócio. “A melhor maneira de fazer a economia do Rio girar, ainda mais em um momento difícil como este, é investir, criando oportunidades, gerando empregos, atraindo turistas”, enumera o empresário, que também assumiu a casa de shows Metropolitan e está estruturando um fundo para trazer de volta outras instituições tradicionais da boa mesa que sucumbiram ao novo coronavírus.
Com inauguração estimada para setembro, as novas empreitadas de Accioly — o Casa Tua Cucina, dedicado à alta culinária, e o Casa Tua Forneria, mais casual — serão tocadas pelo mineiro Atagerdes Alves, que por mais de duas décadas deu expediente nos elegantes salões do Grupo Fasano. “Só que o clima é outro, o ambiente será mais descontraído. Com a pandemia, as pessoas querem estar em lugares leves, alegres e arejados”, opina o maître, ressaltando uma das propaladas tendências para esse mercado tão chacoalhado pelo vírus.
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Tal espírito é endossado pelo restaurateur Leonardo Rezende, à frente do Grupo 14zero3, com quatro bem-sucedidas casas no Rio e uma em São Paulo — essa última já da era pandêmica. Em um imóvel de quatro andares na Rua Maria Quitéria, em Ipanema, ele instalará o asiático SpicyFish, previsto para julho, com sushi bar, estação de robatas (com direito à típica grelha japonesa) e amplo terraço com mesas ao ar livre. Cada detalhe nessas casas que estreiam em tempos tão bicudos está sendo pensado para oferecer experiências singulares, que atraiam para as mesas de bares e restaurantes gente que deixou de frequentá-las. Rezende, por exemplo, contratou uma consultoria para treinar toda a equipe seguindo as rigorosas regras da hospitalidade japonesa. “É algo que não tem no Rio, vai ser uma oportunidade de as pessoas encontrarem por aqui o que veem lá fora”, explica o dono.
Ao longo dos tempos, a gastronomia passou por vastas transformações e foi sempre se amoldando a diferentes paladares e exigências. A margarina é uma dessas invenções criadas para sanar uma lacuna histórica. Ela surgiu em um concurso instituído em 1869 pelo imperador Napoleão III, numa época em que a França estava afogada na depressão econômica, carente de alimentos, e a manteiga escasseava a ponto de o governo desafiar os cientistas a encontrar um substituto para ela. E eis que vem ao mundo a margarina. “Períodos difíceis como este que enfrentamos se refletem nos costumes alimentares, e não será diferente desta vez”, analisa o historiador Enrique Rentería, autor de O Sabor Moderno: da Europa ao Rio de Janeiro na República Velha.
Com o planeta do avesso, a renda minguando e a humanidade mais reflexiva sobre suas escolhas, cozinheiros estrelados passaram a oferecer produtos e serviços mais acessíveis. O chef Pedro de Artagão está transferindo seu Irajá, sob nova proposta, de Botafogo para o Leblon, onde funcionava o Quadrucci, na Rua Dias Ferreira, e ainda inaugurou uma casa de galetos e uma operação de pizzas. “A pandemia nos fez quebrar a cabeça e virar a chavinha, mas busquei seguir a linha criativa que aprendi na alta gastronomia”, diz o restaurateur, com atuais sete casas e mais duas por vir. “Já ouvi filósofos e cientistas dizerem que, após uma crise, a gente atravessa um período de catarse, em que todo mundo curte a vida. Temos de estar preparados para pôr o bloco na rua quando esse momento chegar”, aposta.
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Os empreendedores que depositam suas fichas em meio a chuvas e trovoadas dizem estar se adiantando a dias mais ensolarados para a economia. “Acredito que, lá para o fim do ano, haverá luz no fim do túnel e o Rio, claro, continuará sendo destino para o mundo todo”, projeta o peruano Franco Noriega. Radicado em Nova York e dono do Baby Brasa, o chef está negociando um quiosque com sua grife na Praia de Ipanema. O ponto, que deve abrir até agosto, pretende reproduzir nessas areias a atmosfera jovial e divertida de seu negócio em Manhattan, só que à beira-mar.
“Faltam opções gastronômicas nessa orla tão privilegiada, uma oportunidade para se investir”, avalia o cearense Antonio Rodrigues, dono da rede Belmonte, que desembolsou cerca de 3 milhões de reais na oitava unidade do grupo, em obras num dos últimos casarões da Vieira Souto. Na pandemia, Rodrigues viu sua receita encolher 40%, o que o motivou a pensar em seu tradicional cardápio de uma forma diversa. “Há uma profunda mudança em curso e temos de nos adaptar, procurar melhorar, para não ficar para trás”, afirma ele, que ampliou o menu. Às clássicas caipivodcas e empadas, somou saladas, pratos vegetarianos e uma parrilla.
As novas empreitadas já saem do papel ajustadas para o que se convencionou chamar de o novo normal. O Boa Praça, cuja projeção otimista é chegar ao fim de 2022 com faturamento de 50 milhões de reais juntando as três casas cariocas, por exemplo, nascerá com cardápios digitais, 20% a menos de mesas do que o convencional e distanciamento de 1,5 metro entre elas.
Em seu primeiro voo-solo, o chef Elia Schramm, que conta os dias para ver funcionando a Babbo Osteria, provavelmente no início de agosto, onde funcionou o Salitre de Ipanema, enfatiza: “Como meu modelo foi planejado agora, no meio de uma grande transformação, já o concebi para que dê certo em um cenário de restrições, com menu racionalizado, recursos tecnológicos para otimizar a operação e plano para delivery, que é outro negócio, aliás bastante complexo”.
Muitos dos conceitos em alta à mesa no pós-pandemia já se anunciavam antes dela, como o flexitarianismo, que prega o consumo moderado de proteína animal e vai pautar o cardápio do Allma, em soft opening desde 20 de maio, em Ipanema. “Queremos mostrar que uma comida saudável pode ser muito saborosa, criativa, sem radicalismos nem desperdício. Por isso, também vamos usar o nosso espaço para palestras e trabalhos com a parte educacional da alimentação”, diz o sócio Christiano Londres. Com tantas opções na cidade, difícil mesmo será escolher.
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