Passava um pouco das 10 da manhã de 21 de janeiro, uma quinta-feira, quando a equipe de fiscais da Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor do Rio de Janeiro (Procon-RJ) deixou a sede, no número 25 da Avenida Rio Branco. A missão da vez era inspecionar os bares no trajeto dos principais blocos da Zona Sul — uma rota que estará bastante congestionada nos próximos dias. Neste ano, o Carnaval deve bater recordes no Rio. Onze navios são esperados no porto da capital fluminense e 5 milhões de foliões ocuparão as ruas da cidade de manhã até a madrugada. Divididos em três grupos munidos de kits de toucas e luvas descartáveis, os agentes, identificados com colete e crachá, cobriram os bairros de Copacabana, Ipanema e Leblon durante a blitz. VEJA RIO acompanhou as vistorias e teve acesso exclusivo aos resultados da Operação De Bar em Bar, batizada em homenagem ao samba-enredo da União da Ilha de 1991, cujos versos (“Hoje eu vou tomar um porre / Não me socorre que eu tô feliz / Nessa eu vou de bar em bar / Beber a vida que eu sempre quis”) continuam em alta até hoje. Dos dezoito estabelecimentos vistoriados, onze foram autuados e um interditado por problemas de documentação. Apenas seis passaram incólumes pela inspeção, que descartou cerca de 100 quilos de alimentos vencidos ou sem especificação de validade.
A vistoria nos bares da Zona Sul começou e terminou sob os olhares atentos e temerosos dos garçons de cada estabelecimento visitado. “A gente vê até palavrão se formando nos lábios dos funcionários quando eles notam nossa aproximação”, conta um dos fiscais que percorreram os endereços da Rua Conde Bernardotte, no Leblon, epicentro da vida boêmia no bairro. Logo que as casas começavam a abrir as portas, o grupo em que ele estava se apresentou aos empregados da Academia da Cachaça e solicitou os documentos básicos: alvará de funcionamento e certificados do Corpo de Bombeiros, de potabilidade da água e de dedetização. Os agentes também pediram licença para ir à cozinha. “Tem de jogar esse abacaxi todo fora, amigo!”, advertiu um dos fiscais ao rapaz que picava a fruta com um machucado aberto no dedo. Além de extintor de incêndio vencido, foram encontrados mais de 2 quilos de alimentos fora da validade, devidamente descartados e inutilizados com água sanitária, a fim de evitar o reaproveitamento. Ao término da inspeção, os agentes se reuniram para redigir, a mão, o auto de infração. Nele são anotadas todas as irregularidades encontradas, passíveis de multa, cujo valor inicial é de 500 reais — a punição mais alta já cobrada de um estabelecimento, o Café e Bar Aeroporto Santos Dumont, foi de 92 426,66 reais, numa batida feita em janeiro de 2013. O ritual se repetiu em todos os endereços visitados naquele dia. “A gente leva vinte minutos, no máximo meia hora, inspecionando cada local. É rápido. Por isso, falta de tempo não é desculpa para manter as coisas fora de ordem”, afirma Fábio Domingos, 54 anos, policial federal aposentado e diretor de fiscalização do Procon.
Operações como a De Bar em Bar, que duram uma tarde ou mesmo um dia inteiro, fazem parte da rotina diária dos fiscais do Procon, que escolhe os alvos em função das queixas feitas principalmente pelo telefone de disque-denúncia, o 151. Diariamente, são recebidas entre cinquenta e oitenta reclamações relativas à área de alimentos, um dos pilares da instituição. Treze agentes, boa parte concursada, com idade entre 25 e 70 anos e salário inicial de 2 100 reais, batem ponto no departamento de fiscalização. Apesar de o cargo não exigir ensino superior, a maioria é formada em direito. De fato, a função exige notável conhecimento das leis, entre elas o Código de Defesa do Consumidor e a Resolução 216/2004 da Anvisa, espécie de manual de boas práticas de higiene. É preciso também (o que é ainda mais importante) ter estômago de ferro para encarar a função. “Meus hábitos mudaram depois que comecei a trabalhar no Procon. Fiquei mais seletiva para comer fora”, conta Elisa de Freitas, 33 anos, uma das últimas servidoras a chegar à repartição, há menos de um ano. Ela e seus colegas sabem exatamente o que acontece da porta da cozinha para dentro. A turma já encontrou produto de limpeza dentro da caixa de peixes crus, veneno de rato perto de utensílios de cozinha, par de meias secando sobre baldinho de champignons, balde de suco de laranja no chão, onde o funcionário metia a mão para retirar a bebida com um copo, banheiro dos funcionários em frente à cozinha, sem porta e, acredite, com alimentos acondicionados lá dentro, entre outras porcariadas. Também já deparou com gatos zanzando pela cozinha — “para caçar os ratos”, confessaram os funcionários — e até com uma chinesa que comeu tofu vencido na tentativa de convencer os fiscais de que o produto estava bom, sim, senhor.
Há sete meses, no mesmo dia em que clientes do Bar do Adão, na Tijuca, descobriram larvas no recheio de um pastel, outra cena indigesta foi testemunhada em Laranjeiras. Um rato caiu vivo, do teto, no prato de um coronel da Polícia Militar que almoçava na Casa Brasil, na Praça São Salvador. Quando os agentes do Procon chegaram ao local, encontraram um ninho de roedores, fezes e baratas, além de alimentos e chope vencidos. O estabelecimento foi interditado no que ficou conhecido como Operação Mickey Mouse. Anteriormente, três filiais do Bar do Adão já haviam sido lacradas durante a Operação Éden. A rede especializada em pastéis, aliás, está entre as casas recordistas de autuações, junto com o restaurante Balada Mix e os supermercados Extra. Outra blitz emblemática é a Operação Dudu, também do ano passado, em homenagem ao personagem do desenho Popeye. Na hamburgueria P.J. Clarke’s, no Leblon, onde um sanduíche pode custar 40 reais, foram encontrados 11 quilos de picanha sem especificação de validade. Há ainda situações que vão além e exigem não só estômago como nervos de aço. Já teve proprietário irritado que começou a jogar peças de filé-mignon vencidas na cabeça de seus empregados, por exemplo. “Certa vez fui ameaçado por um peixeiro com facão e por seguranças armados”, diz Marco Antônio da Silva, 53 anos, o fiscal há mais tempo em serviço. Mestre em artes marciais, ele garante nunca ter usado a luta a trabalho. Não é o caso de Domingos, o diretor da fiscalização, que precisou imobilizar o filho do dono de um abatedouro para evitar que o rapaz fugisse antes de prestar esclarecimentos à polícia sobre as condições adversas do local: “A gente prefere a gentileza, mas às vezes palavras bonitas não bastam”.
O início da política de fiscalização arrochada do Procon coincide com a posse da deputada Cidinha Campos na Secretaria Estadual de Defesa do Consumidor, em 2013. Naquele ano, foram registrados 1 810 autos de infração, seguidos de 2 501 em 2014 e 2 463 em 2015. As interdições aumentaram, respectivamente, de duas para 27, e depois para 443. “O Rio estava entregue à falta de higiene. Como passamos a exigir o cumprimento das leis, nossos fiscais já encontram vários lugares sem problemas”, afirma a secretária, que nomeou Domingos para liderar a fiscalização. Com experiência na delegacia de repressão a entorpecentes da PF, ele é conhecido por ser linha-dura. E ainda por ser um dos mais criativos na hora de dar nome às operações. A Ratatouille, famosa por mirar os restaurantes requintados da cidade, foi batizada por Domingos nos mesmos moldes utilizados pela Polícia Federal. A ação foi também uma das mais criticadas pelos chefs. Proprietário do Lasai, Rafa Costa e Silva, que trabalhou por cinco anos na Espanha, não acredita na fiscalização como é feita no Rio. “Quando os fiscais chegaram, havia um bolo de fubá recém-saído do forno, portanto sem etiqueta. Eles o consideraram impróprio para o consumo e o jogaram no lixo. Por que não fazem um teste laboratorial?”, questiona. O restaurateur Marcelo Torres, do grupo Best Fork, decidiu seguir as regras à risca após ter seu restaurante no Museu de Arte Moderna (MAM), o Laguiole, autuado em 2014. “Há exigências que não fazem muito sentido, mas lei é para ser cumprida. Não adianta lutar contra”, conclui.
Órgão municipal igualmente dedicado à fiscalização de alimentos, entre outros segmentos da área de saúde, a Vigilância Sanitária realiza um trabalho semelhante. A Pizzaria Guanabara do Leblon, por exemplo, foi interditada completamente pela Vigilância no último dia 21, a mesmo data em que o Procon pôs em prática a Operação de Bar em Bar e isolou apenas uma área do estabelecimento. “A gente vai mais fundo e costuma perceber detalhes que o Procon às vezes não alcança”, compara o subsecretário Arnaldo Lassance, médico sanitarista. Hoje, o foco da instituição são as medidas educativas. “Nosso objetivo é criar um diálogo permanente com a sociedade e deixar de ser apenas um órgão punitivo”, explica Lassance, que em 2013 assistiu à prisão de 27 fiscais de sua equipe acusados de receber propina para não inspecionar determinados locais. Se por um lado há proprietários que acreditam na política estadual, por outro existem os que se identificam mais com a municipal. “A fiscalização tem de acontecer, sim. Mas, da forma como o Procon age, parece que seus agentes estão mais interessados em aparecer do que em prevenir problemas”, argumenta Antonio Perico, sócio do Antiquarius, onde foram encontrados 25 quilos de alimentos vencidos em 2013. No fogo cruzado entre os donos de estabelecimentos e os fiscais, uma coisa é certa: quem sai ganhando é o consumidor.
* Colaborou Fábio Codeço